O Papa Francisco enviou à cúpula da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura uma mensagem inequívoca: “Produzimos alimentos suficientes para todos, mas muitos ficam sem o pão de cada dia

Foto: Alessandra Benedetti | Arquivo/FAO

Antecipação da cúpula marcada para o próximo mês de setembro em Nova York, ontem teve início em Roma a pré-cúpula sobre sistemas alimentares. Três dias de discussões sob a orientação do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, com a participação, além do Primeiro-Ministro Mario Draghi, de chefes de estado e de governo. Os palestrantes são pesquisadores, pequenos agricultores, populações indígenas, representantes do setor privado e ministros da agricultura.

A reportagem é de Matteo Marcelli, publicada por Avvenire, 27-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini para o site IHU

O objetivo é avaliar paradigmas de produção capazes de atender às crescentes necessidades mundiais de alimentos, mas também a necessária transição para modelos baseados na sustentabilidade e no respeito ao meio ambiente, de acordo com as metas da agenda 2030 da ONU. Um momento de diálogo que poderia favorecer o início daquela ecologia integral invocada pelo Papa Francisco na encíclica Laudato si' e pôr um fim à cultura do descarte que encontra uma de suas manifestações mais evidentes justamente no acesso ao alimento.

O Pontífice enviou à cúpula uma mensagem inequívoca: “Produzimos alimentos suficientes para todos, mas muitos ficam sem o pão de cada dia. Isso constitui um verdadeiro escândalo, um crime que viola os direitos humanos básicos. Portanto, é dever de todos erradicar essa injustiça por meio de ações concretas e boas práticas, e por meio de audaciosas políticas locais e internacionais”. E ainda: “Temos a responsabilidade de realizar o sonho de um mundo em que pão, água, remédios e trabalho estejam disponíveis em abundância e cheguem primeiro aos mais necessitados. É necessária uma nova mentalidade e uma nova abordagem holística. São necessários sistemas alimentares que protejam a Terra e mantenham a dignidade da pessoa humana ao centro - insistiu Francisco - que garantam alimentos suficientes em nível global e promovam trabalho digno em nível local, que alimentem o mundo hoje, sem comprometer o futuro". O Papa dirigiu a seguir uma advertência direta às instituições presentes: “Estamos conscientes de que interesses econômicos individuais, fechados e conflitantes nos impedem de projetar um sistema alimentar que responda aos valores do bem comum, da solidariedade e da cultura do encontro. Se queremos manter um multilateralismo frutuoso e um sistema alimentar baseado na responsabilidade, a justiça, a paz e a unidade da família humana são fundamentais”.

Em 2020, 800 milhões de pessoas sofreram fome, 130 milhões a mais do que em 2019, segundo os dados apresentados por Guterres. Um aspecto que a pandemia Covid-19 certamente agravou, mas que a propagação do vírus por si só não explica. Os responsáveis são, principalmente, “pobreza, desigualdades, os altos preços dos alimentos, os efeitos das mudanças climáticas e os conflitos - como destacou o secretário-geral da ONU. No entanto, ainda há esperança. Devemos responder a esses desafios com ideias, energia e parcerias”.

“A crise sanitária gerou uma crise alimentar. Assumimos compromissos para garantir que as vacinas estejam disponíveis para os mais pobres do mundo. Devemos agir com a mesma determinação para melhorar o acesso a uma quantidade adequada de alimentos - destacou Draghi -. Devemos promover hábitos alimentares saudáveis, preservando as culturas alimentares tradicionais construídas ao longo dos séculos. Esta pré-cúpula é uma oportunidade para transformar a forma como pensamos, produzimos e consumimos o alimento”. Meta difícil de alcançar se não começarmos a lidar com os desequilíbrios: “Queremos chegar a desperdício zero e depois chegar à fome zero” é a meta lembrada pelo diretor-geral da FAO Qu Dongyu.

Eis a mensagem na íntegra.

Excelências,
Senhoras e Senhores,

Uma saudação cordial a todos os que participam deste importante encontro, que manifesta novamente que um de nossos maiores desafios atuais é vencer a fome, a insegurança alimentar e a desnutrição na era da COVID-19.

Esta pandemia nos confrontou com as injustiças sistêmicas que minam nossa unidade como família humana. Nossos irmãos e irmãs mais pobres, e a Terra, nossa Casa Comum que “clama pelo dano que provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus colocou nela” [1], exigem uma mudança radical.

Desenvolvemos novas tecnologias com as quais podemos aumentar a capacidade do planeta para dar frutos e, no entanto, continuamos explorando a natureza até o ponto de a esterilizar [2], ampliando assim não somente desertos externos, mas também desertos espirituais internos [3]. Produzimos alimentos suficientes para todas as pessoas, mas muitas ficam sem o seu pão de cada dia. Isto “constitui um verdadeiro escândalo” [4], um crime que viola direitos humanos básicos. Portanto, é um dever de todos erradicar esta injustiça [5] por meio de ações concretas e boas práticas, e através de políticas locais e internacionais audaciosas.

Nesta perspectiva, desempenha um papel importante a transformação cuidadosa e correta dos sistemas alimentares, que deve estar orientada para que sejam capazes de aumentar a resiliência, fortalecer as economias locais, melhorar a nutrição, reduzir o desperdício de alimentos, oferecer dietas saudáveisacessíveis para todos, ser ambientalmente sustentável e respeitosas com as culturas locais.

Se queremos garantir o direito fundamental a um nível de vida adequado [6] e cumprir nossos compromissos para alcançar o objetivo Fome Zero [7], não basta produzir alimentos. É necessário uma nova mentalidade e um novo enfoque integral [8] e esboçar sistemas alimentares que protejam a Terra e mantenham a dignidade da pessoa humana no centro, que garantam alimentos suficientes, a nível mundial, e promovam o trabalho digno, a nível local, e que alimentem o mundo hoje, sem comprometer o futuro.

É essencial recuperar a centralidade do setor rural, do qual depende a satisfação de muitas necessidades humanas básicas, e é urgente que o setor agropecuário recupere um papel prioritário no processo de tomada de decisões políticas e econômicas, orientadas a delinear o marco do processo de “reinício” pós-pandemia que está sendo construído.

Neste processo, os pequenos agricultores e as famílias agrícolas devem ser considerados atores privilegiados. Seus conhecimentos tradicionais não devem ser esquecidos ou ignorados, ao passo que sua participação direta lhes permite compreender melhor suas prioridades e necessidades reais. É importante facilitar o acesso dos pequenos agricultores e da agricultura familiar aos serviços necessários para a produção, comercialização e uso dos recursos agrícolas.

família é um componente essencial dos sistemas alimentares, porque na família “se aprende a desfrutar do fruto da terra sem abusar dele e são descobertas as melhores ferramentas para difundir estilos de vida respeitosos ao bem pessoal e coletivo” [9]. Este reconhecimento deve ser acompanhado de políticas e iniciativas que satisfaçam plenamente as necessidades das mulheres rurais, fomentem o emprego dos jovens e melhorem o trabalho dos agricultores nas zonas mais pobres e remotas.

Somos conscientes de que os interesses econômicos individuais, fechados e conflitivos – mas poderosos – [10], nos impedem de traçar um sistema alimentar que responda aos valores do Bem Comum, à solidariedade e à “cultura do encontro”. Se queremos manter um multilateralismo frutífero [11] e um sistema alimentar baseado na responsabilidade, a justiça, a paz e a unidade da família humana é primordial. [12]

A crise que enfrentamos atualmente é, na realidade, uma oportunidade única para estabelecer diálogos autênticosaudaciosos e corajosos [13], abordando as raízes de nosso sistema alimentar injusto.

Ao longo desta reunião, temos a responsabilidade de realizar o sonho de um mundo onde o pão, a água, os remédios e o trabalho emanem em abundância e cheguem primeiro aos mais necessitados. A Santa  e a Igreja católica se colocarão a serviço deste nobre fim oferecendo sua contribuição, unindo forças e vontades, ações e sábias decisões.

Peço a Deus que ninguém fique para trás, que toda pessoa possa atender às suas necessidades básicas. Que este encontro para a regeneração de sistemas alimentares nos coloque a caminho para construir uma sociedade pacífica e próspera, e semear sementes de paz que nos permitam caminhar em autêntica fraternidade [14].

Vaticano, 26 de julho de 2021.

FRANCISCO

Notas

[1] Papa Francisco, 2015, Laudato Si’ – Sobre o Cuidado de Nossa Casa Comum, 2

[2] Cf. Paulo VI, 1971, Octogesima Adveniens, 21.

[3] Bento XVI, 2005, Homilia no solene início do ministério petrino, 710.

[4] Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social, 189.

[5] Cf. Papa Francisco, 2017, Mensagem do Santo Padre Francisco aos Participantes da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)

[6] Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 1948, A Declaração Universal de Direitos Humanos.

[7] Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 2015, Transformar nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

[8] Papa Francisco, 2019, Mensagem do Santo Padre Francisco para a Jornada Mundial da Alimentação 2019.

[9] Papa Francisco, 2019, Mensagem do Santo Padre Francisco para a Jornada Mundial da Alimentação 2019.

[10] Cf. Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social, 12, 16, 29, 45, 52.

[11] Cf. Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social, 174.

[12] Papa Francisco, 2015, Vídeo-Mensagem do Santo Padre Francisco por ocasião da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas.

[13] Cf. Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social, 201-203.

[14] Cf. Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social, 2.