SSB
15/10/2020
Foto: Creative commons/Pablo Bandeira

“Não dá pra deixar as pessoas acreditarem que o arroz subiu porque elas estão comendo mais, e sim porque se prioriza o lucro do agronegócio”

Karla Maria

“Fiquei desempregada, sem dinheiro para pagar aluguel e para comprar comida. Vivo na rua com meus filhos”, desabafa Maria Silva, mãe de Bruno, Murilo e Stephanie, que vive na maior cidade do país, São Paulo, e todos os dias dorme sem saber como alimentar seus filhos no dia seguinte.

Maria não tem casa e por isso sua realidade não entra nas pesquisas recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontam que 10,3 milhões de brasileiras e brasileiros vivem em situação grave de insegurança alimentar, ou seja, passam fome. Ela e seus filhos são invisíveis aos números e passam fome.

A pesquisa feita antes dos efeitos da pandemia de Covid-19, em 2017-2018, revelaainda que entre os 68,9 milhões de domicílios no país, 36,7% deles (25,3 milhões de casas) estavam com algum grau de insegurança alimentar. “Norte e Nordeste continuam apresentando as menores prevalências de segurança alimentar. Continuamos identificando domicílios com mais moradores, crianças, mulheres pessoas de referência do domicílio que apresentam uma maior associação à insegurança alimentar e também identificamos a importância da participação das despesas com alimentação nos domicílios com alguma insegurança alimentar”, analisa André Martins,gerente da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE.

O IBGE define insegurança alimentar como a preocupação com o acesso aos alimentos no futuro e quando já se verifica comprometimento da qualidade da alimentação, ou quando os adultos da família assumem estratégias para manter uma quantidade mínima de alimentos disponível aos seus integrantes.

Como é possível um país como o Brasil, que bate recordes atrás de recordes na produção e exportação de alimentos, não conseguir alimentar seu próprio povo, suas próprias crianças? "Pelo menos metade das crianças menores de cinco anos viviam em lares com algum grau de insegurança alimentar",aponta o IBGE, o que equivale a 6,5 milhões de crianças. 

Quando a referência é insegurança grave — ou fome —, 5,1% das crianças com menos de 5 anos e 7,3% dos jovens com idade entre 5 e 17 anos vivem nessa condição, como os filhos de Maria, mas eles não têm lugar para viver e por isso não entram nas estatísticas. 

Para Flávia Londres, secretária executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o cenário de piora nos índices de segurança alimentar já era esperado. “Infelizmente o cenário de piora na segurança alimentar era esperado, porque a gente vem vivendo desde o golpe de 2016 um retrocesso nas políticas sociais, de apoio à agricultura familiar de um modo geral, e esse resultado era completamente previsível. Vemos com muita preocupação, mas infelizmente sem nenhuma surpresa”.

A supervisora de pesquisas do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Patrícia Costa, analisa os dados de insegurança alimentar e aponta o abandono da política da agricultura familiar como resposta. “Esse abandono é um dos grandes responsáveis pela redução da segurança alimentar e isso indica que você tem uma quantidade grande de pequenos produtores que estão à margem do trabalho formal”.

A avaliação de Patrícia bate com os números do IBGE, que apontam a insegurança alimentar grave no Brasil, principalmente em áreas rurais: 40,1% da população rural passa fome, enquanto 23,3% da população urbana atravessa a mesma situação.

“É preciso ter uma política agrícola forte que leve em consideração a importância estratégica dos alimentos. É preciso retomar, fortalecer a agricultura familiar, mantendo esse produtor no campo, diversificando a produção dele, dando critérios de produção para que ele possa participar dos programas de alimentos, oferecendo subsídio, e ele vai produzir com mais consciência, com menos agrotóxico, fazendo menos mal ao meio ambiente e alimentando com qualidade a população do entorno. Então a agricultura familiar tem que ser retomada, porque o ganho social é muito grande”, aponta a supervisora de pesquisa do Dieese.

Enquanto a fome visita os lares e calçadas do país, o agronegócio vem batendo recordes de exportação e lucros, sobrando aos mais pobres uma conta difícil de ser resolvida: desemprego, informalidade, mercado de trabalho precário, baixos salários e flexíveis a depender da existência ou não de trabalhos intermitentes,a alta dos preços.

“O governo partiu de uma matriz neoliberal, que já foi testada em outros lugares e que não gerou emprego. A reforma trabalhista foi feita com o argumento de que a CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas] engessa. Foi criada uma crise econômica. Um país para crescer precisa de estabilidade política, estabilidade econômica e de uma direção, porque veja, temos o setor de agronegócio lucrando muito e a população brasileira pagando mais caro por esse lucro, porque pagamos aqui dentro mais caro por esse produto”, analisa Patrícia Campos.

Sem renda suficiente não há compra de alimentos e sobra insegurança alimentar. Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos elaborada pelo Dieese aponta que o salário mínimo necessário para que o a população brasileira viva de modo digno no mês de agosto de 2020, por exemplo, deveria ser de R$ 4.536,12. O salário mínimo hoje é R$ 1.045.

O valor apontado é constituído a partir do preço dos alimentos da cesta básica, que está em alta, e do preceito da Constituição Federal de que o salário deve possibilitar à trabalhadora,ao trabalhador e a sua família uma vida em dignidade, com moradia, alimentação, acesso a saúde e educação.

“Sabemos que não é possível por decreto elevar a R$ 4.000 o salário mínimo, porque geraria uma questão inflacionária imediata, mas você pode ter uma política de longo prazo para recuperar esse poder de compra e transformar o salário mínimo num instrumento de distribuição de renda. Vimos que isso foi possível quando você fez essa política. Todos os indicadores de desigualdade começaram a se mexer e viu-se uma melhor distribuição de renda”, complementa a pesquisadora.

Impactos da pandemia de Covid-19 na segurança alimentar

Em tempos de pandemia, cerca de 40 milhões de crianças e adolescentes tiveram que lidar com o impacto da Covid-19 em sua rotina de estudos e na alimentar. Desde março, quando iniciou-e oficialmente o fechamento das escolas, foi possível observar por meio da pesquisa Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes, realizada pelo Ibope para aUnicef, as consequências diretas na segurança alimentar e nutricional no País.

Segundo a pesquisa, 31% das famílias com crianças e adolescentes passaram a consumir mais alimentos industrializados, tais como macarrão instantâneo, bolos, biscoitos recheados, achocolatados, alimentos enlatados, mais baratos, inclusive. Um em cada cinco brasileiros (21%) passou por algum momento em que os alimentos acabaram e não havia dinheiro para comprar mais. O percentual de quem passou por essa dificuldade sobe para 27% quando falamos de casas onde residem crianças e adolescentes.

A pesquisa releva que 6% dos entrevistados disseram que tiveram fome e deixaram de comer por falta de dinheiro para comprar comida (9% entre quem vive com crianças e adolescentes). 

“Vemos o aumento da insegurança alimentar e nutricional, que pode levar à desnutrição e à deficiência de micronutrientes. A má nutrição tem impactos preocupantes no desenvolvimento das crianças, em especial nos primeiros anos de vida. Essa situação impacta prioritariamente as populações mais vulneráveis, com efeitos a longo prazo. É fundamental atuar imediatamente para reverter esse cenário e garantir o acesso de meninas e meninos a uma alimentação adequada e saudável”, afirmou a chefe de Saúde daUnicef no Brasil ao lançar a pesquisa.

 “É uma situação de perversidade, porque você continua penalizando as famílias mais pobres. Você tem um presidente que vai à televisão e diz que o arroz está subindo, porque as pessoas estão comendo mais. Isso não é verdade. Olha a balança comercial. Em abril exportamos 60 mil toneladas e hoje [outubro] 216 mil toneladas.Está faltando aqui dentro. O salário não acompanha e aí a inflação baixa, porque as pessoas não estão comprando e parece que está tudo lindo, mas não, as pessoas estão deixando de comprar porque não têm dinheiro. Não dá pra deixar as pessoas acreditarem que o arroz subiu porque elas estão comendo mais, e sim porque se prioriza o lucro do agronegócio”, avalia Patrícia Campos.

Do campo para os alunos

O Brasil conta com o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),que passa por dificuldades de adaptação no fornecimento de alimentação escolar aos estudantes durante a pandemia. A Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) lembra que o PNAE é considerado uma das mais relevantes políticas voltadas à garantia do Direito Humano à Alimentação e a Nutrição Adequadas, que atende cerca de 41 milhões de estudantes com repasses financeiros aos 27 estados e 5.570 municípios na ordem de R$ 4 bilhões anuais.

“Para muitos desses estudantes, é na escola que se faz a única ou principal refeição do dia. Por lei, as prefeituras e estados têm a obrigação de adquirir no mínimo 30% dos recursos previstos para a alimentação escolar na compra alimentos da agricultura familiar. Com esses 30%, que representam R$ 1,2 bilhão, é que se assegura boa parte dos alimentos frescos e minimamente processados para a comunidade escolar”, aponta a ASA com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), em nota de apresentação de um levantamento conjunto que identificou que em 37% dos municípios pesquisados não há entrega de cestas para as famílias dos estudantes durante a pandemia.

Na cidade de Remanso, às margens do Rio São Francisco, na Bahia, a prefeitura não tem adquirido os alimentos da agricultura familiar, mesmo com os contratos do PNAE vigentes em 2020. “Com isso, a renda dos 13 grupos produtivos do município que participaram do levantamento, sendo a maioria com até 30 famílias integrantes, saíram de uma receita de R$ 630 mil em 2019 para zero em 2020”, aponta levantamento da ASA e do FBSSAN.

Em junho foi aprovada a Lei 13.987,que determina que durante o período de suspensão das aulas nas escolas públicas de educação básica, em razão de situação de emergência ou calamidade pública, fica autorizada, em todo o país e em caráter excepcional, a distribuição imediata aos pais ou responsáveis dos estudantes nelas matriculados dos gêneros alimentícios adquiridos com recursos financeiros recebidos à conta do PNAE.

Para Flávia Londres, integrante da secretaria executiva da ANA, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é uma política de segurança alimentar, e também de geração de trabalho e renda para a agricultura familiar, que produz os alimentos saudáveis para a rede escolar. Segundo Flávia, para que o PNAE seja executado de fato é preciso que haja diálogo do gestor com as organizações da sociedade civil.

“Onde as cooperativas, os grupos da agricultura familiar, as redes sociotécnicas envolvidas na implementação do programa e os conselhos de alimentação escolar estão envolvidas, percebemos que a maioria das escolas encontram saídas para seguir com o fornecimento de alimentos para as famílias. É necessário o diálogo entre a sociedade civil e o Estado”, complementa.

Nesse sentido, a articulação lançou a campanha Agroecologia nas Eleições,com o objetivo de mobilizar e pressionar gestores locais e candidatos às vereanças e prefeituras a se comprometerem com pautas e políticas que tenham a segurança alimentar e a agricultura familiar como saídas para o país. A articulação apresenta um documento com 36 propostas, organizadas em 13 campos temáticos, para a criação de políticas públicas de apoio à agricultura familiar e à agroecologia, a ser entregue a candidaturas de cidades pelo Brasil. 

“Sabemos que existem muitas iniciativas de políticas municipais que acolhem a agroecologia em suas ações, e que de um modo geral são muito desconhecidas. Queremos agora conquistar compromissos com as candidaturas, que se comprometam coma agenda da agroecologia e rompam com o discurso de que o município não tem recursos. Sim, é possível fazer e temos exemplos”.

Um levantamento realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia em todos os estados do Brasil identificou 700 iniciativas de políticas e programas municipais que contribuem para o desenvolvimento da agroecologia e apoiam a agricultura familiar.

Insegurança Política

Em meio aos dados de insegurança alimentar no Brasil, ogoverno federal extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) por meio de Medida Provisória 870, publicada em janeiro deste ano, um dos pilares do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional garantida pela Lei de Segurança Alimentar e Nutricional.

“Este é um governo que não se compromete com a segurança alimentar, com o fim da miséria, da pobreza, que não se compromete com o bem-estar da população. [...] Justamente em um momento em que as políticas federais estão sendo duramente e rapidamente desmontadas e que a gente não tem mais espaço de diálogo com o governo federal, porque todos os conselhos foram desmontados, e todos os canais de interlocução ou de incidência foram fechados, mais do que nunca é importante fazer a disputa política nos planos locais, nos municípios”, conclui a secretária executiva da Articulação Nacional de Agroecologia, Flávia Londres.

Em outubro de 2020, o Programa Mundial de Alimentos (World Food Program), da Organização das Nações Unidas (ONU), recebeu o Prêmio Nobel da Paz 2020 por seu combate à fome em 88 países, na tentativa de fazer com que as 690 milhões de pessoas que estão em situação de insegurança alimentar tenham o que comer.