SSB
19/03/2021

"Prefiro crer num Deus que não pode tudo magicamente, mas está conosco sempre, especialmente na mais cruel dor"

A imagem acima é do cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, no dia 5 março de 2021
| Foto de Aguilar Abecassis/Futura Press/Estadão Conteúdo)

Onde está Deus nessa pandemia? Está nos doentes sem ar, entubados ou sofrendo fome e desemprego devido às desigualdades agravadas; está nas médicas, enfermeiros, faxineiras, cuidadores que servem aos sofredores. Está enfrentando o mal do seu jeito, como ensinou Jesus, junto conosco pela práxis do amor.

Por João Fernandes Splinter

O problema da conciliação entre a existência do mal no mundo e a bondade de Deus (teodiceia) é uma das mais antigas e desconcertantes questões para o ser humano. Em momentos de grandes tragédias, o questionamento pela “ausência” de Deus aflora com muita força. Onde estava Deus em Auschwitz? E agora: Onde está Deus nessa pandemia? Só no Brasil estão morrendo quase 3 mil pessoas por dia. Com esse governo genocida, logo superaremos esse número que não é fria estatística, mas filhos e filhas de Deus morrendo.

Para conciliar a existência do mal e a onipotência de Deus surgem as desculpas mais problemáticas e cruéis. A pior é a que diz que “Deus mandou o mal para punir” (a pandemia é resultado da “blasfêmia” do carnaval); outra versão é a que diz que isso faz parte da pedagogia divina, “Deus manda o mal para daí tirar um bem”, ou então, “Deus não manda um problema que você não possa resolver”. A versão “menos ruim” é a clássica de Agostinho que, inclusive, é recolhida pelo Catecismo no parágrafo 311: “Deus não é de modo algum, nem direta nem indiretamente, a causa do mal moral. Todavia, permite-o, respeitando a liberdade de sua criatura e, misteriosamente, sabe auferir dele o bem”, ou seja, Deus não cria o mal, mas o permite e dele tira algum bem. Muito mais lúcida, nesse sentido, foi a resposta do papa Francisco em sua viagem às Filipinas: “quando nos fizerem a pergunta ‘porque sofrem as crianças, porque acontece isto ou aquilo de trágico na vida’, que a nossa resposta seja o silêncio ou a palavra que nasce das lágrimas” (PAPA FRANCISCO, 2015). Mais que arriscar uma resposta estúpida ou que transpareça uma imagem deturpada de um Deus cruel cuja pedagogia é mais demoníaca que divina, o papa prefere assumir a ignorância diante da razão do sofrimento e pede unicamente a compaixão diante de quem sofre. Assumir a dor do outro chorando.

Porém, uma questão mais profunda pode ser colocada. A partir da Escritura, qual visão se tinha de Deus e de seu poder? Afirmamos que Jesus é a plena revelação de Deus; esse é o princípio fundamental do cristianismo. Mas que Deus, então, Jesus revelou? Na verdade, apesar da crença explícita num Deus pessoal, muitas vezes, a imagem implícita de deus que foi assumida pela tradição, em diálogo com a filosofia grega, é de um deus mais conforme o pensamento grego antigo que o Deus da bíblia revelado plenamente em Jesus. Às vezes, nosso deus parece mais o Motor-imóvel de Aristóteles, que só pode pensar o que é perfeito, portanto só pensa a si mesmo e nem sabe da existência do mundo, é pensamento de pensamento. Isso porque imaginamos um deus separado do mundo, a-histórico, que transcende a história; um deus apático, que é tão absoluto que não pode sofrer, porque sofrimento seria fraqueza, seria falta, e nada falta num ser perfeito. Deus é tão poderoso, pode tudo, de modo que poderia destruir o mundo com estalar de dedos (se os tivesse) e refazer de novo. Porque então esse Deus não acaba com o sofrimento? Quando mergulhamos no estudo da Escritura, percebemos a necessidade de nos convertermos dessa visão de Deus.

Deus não está fora do alcance do sofrimento e da dor humana. Ele está pessoalmente envolvido e até mesmo perturbado pela conduta e destino do homem

O grande rabino judeu Abrahan Heschel nos recorda que “o Deus dos filósofos é como o ananke grego, desconhecido e indiferente ao homem; Ele pensa, mas não fala; está consciente de Si mesmo, mas abstraído do mundo, enquanto o Deus de Israel é um Deus que ama, um Deus conhecido pelo homem e preocupado com ele… Deus não está fora do alcance do sofrimento e da dor humana. Ele está pessoalmente envolvido e até mesmo perturbado pela conduta e destino do homem” (HESCHEL, 1973, p. 119–120). Que escândalo, Deus sofre! Sim, o Deus da bíblia não é apático como a visão filosófica grega antiga, que em certa medida absorvemos; Deus sofre quando o povo sofre, Ele é afetado sim pela dor do povo. Isso tem sua expressão máxima em Jesus Cristo que nos revelou um Deus crucificado, expressão cujas implicações foram tão bem desenvolvidas por Moltmann em sua obra de título homônimo. Jesus nos revelou um Deus que viveu a impotência, um Deus que sofre e morre e ao fazer isso, assume a dor de todos os sofredores e sofredoras da história.

Jon Sobrino observa a partir das formulações dogmático-cristológicas, embebidas em boa medida pela filosofia grega, que “a dificuldade fundamental consiste em que as formulações deem a impressão de que já se sabe de antemão quem é Deus, que é ser homem… Mas o problema que a cristologia coloca é precisamente o contrário. Sabe-se quem é Deus e que é ser homem a partir de Cristo e não vice-versa. Deus não é qualquer divindade, mas em primeiro lugar o Pai de Jesus; e ser homem não é possuir simplesmente uma essência animal racional, mas ser como Jesus” (SOBRINO, 1983, p. 339). Mais que afirmar que Jesus é Deus, é preciso afirma Deus é Jesus. Não podemos olhar pra Jesus com nossa compreensão de Deus e dizer: Jesus é Deus. Pelo contrário, é olhando pra Jesus que aprendemos como Deus é. E olhando pra Jesus, aprendemos que Deus é um Deus crucificado, que não pode acabar com o sofrimento magicamente, mas sofre com os que sofrem. Ligado a isso está à própria concepção de Messias como podemos ver de forma mais clara na própria estrutura do Evangelho de Marcos. O autor trata isso em sua obra dois momentos. Num primeiro até a confissão de Pedro em Cesaréia, vem a pergunta quem é Jesus. “‘E vós, perguntou Ele, quem dizeis que EU SOU?’ Pedro respondeu: ‘Tu és O Cristo’” (Mc 8,29). Aqui vem a resposta certa. Jesus é o Cristo. Mas a segunda parte do Evangelho é um desenvolvimento sobre que tipo de Cristo é Jesus, pois Pedro deu a resposta certa, mas o sentido errado. Ele, 3 versículos depois, não aceitou que Jesus fosse um Cristo sofredor, quando este anunciou sua morte: “Pedro, chamando-o de lado, começou a recriminá-lo” (Mc 8,32). A verdadeira revelação de quem é Jesus nesse Evangelho só vem no final, pela boca de um pagão, quando viu Jesus morrer na cruz: “o centurião, que se achava bem defronte dEle, vendo que havia expirado desse modo, disse: ‘Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!’” (Mc 15,39). Só podemos saber quem é Jesus e, portanto, quem é Deus, a partir da cruz.

Imaginemos uma mãe que tem poderes miraculosos de cura. Ela tem dois filhos com uma doença terminal. Se ela tem o poder para curar, ela vai deixar seus filhos morrerem? Ou pior, vai curar um e deixar o outro morrer? Claro que não. “Ora, se vós que sois maus sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará coisas boas aos que lhe pedem” (Mt 7,11). Se Deus pudesse magicamente resolver os problemas do mundo, sendo ele bom e misericordioso, Ele não resolveria? Claro que sim. Não basta apelar para os desígnios misteriosos de Deus etc. Claro que nunca entenderemos plenamente o mistério de Deus, somos finitos demais para isso. Mas algumas coisas podemos conhecer olhando pra Jesus. Se nós que somos pais e mães pecadores, imperfeitos, curaríamos nossos filhos se tivéssemos esse poder, quanto mais Deus que é Sumo Bem. Seria Deus impotente? Em certo sentido sim. Seria Deus onipotente? Em certo sentido também sim. A onipotência de Deus está no amor, não num poder mágico. O poder do seu amor vai até as últimas consequências numa cruz, e é tão grande que vai além da morte e gera ressurreição.

Relacionar Deus com sofrimento, impotência e vulnerabilidade provoca vertigem metafísica

Por isso, como diz Sobrino, “o que resta, acredito, é viver com uma teodiceia não resolvida na teoria e uma prática que continua abrindo caminho — junto com um Deus também caminhante — na história do sofrimento” (SOBRINO, 2007, p. 191–192), pois “se Deus estava na cruz de Jesus, não é o Deus em quem costumamos pensar. Ou, em outras palavras, ao seu poder na criação, no êxodo, na ressurreição, é preciso acrescentar agora seu silêncio, sua inanição, sua impotência na cruz” (SOBRINO, 2007, p. 194). Isso mesmo sabendo que “relacionar Deus com sofrimento, impotência e vulnerabilidade provoca vertigem metafísica” (SOBRINO, 2007, p. 195).

Onde está Deus nessa pandemia? Está nos doentes sem ar, entubados ou sofrendo fome e desemprego devido às desigualdades agravadas; está nas médicas, enfermeiros, faxineiras, cuidadores que servem aos sofredores. Está enfrentando o mal do seu jeito, como ensinou Jesus, junto conosco pela práxis do amor. Essa reflexão encerra o problema? De forma alguma, nem anda perto. Esse Deus é sem graça? Pra alguns sim. Mas prefiro crer num Deus que não pode tudo magicamente, mas está conosco sempre, especialmente na mais cruel dor, que crer num Deus que pode tudo e deixa seus filhos e filhas sofrendo apesar de ter o poder para livrá-los e não o faz, sabe-se lá porque razões.

Referências bibliográficas

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição típica vaticana. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

HESCHEL, Abraham J. Los profetas II: Concepciones históricas y teológicas. Buenos Aires: Paidos, 1973.

PAPA FRANCISCO. Viagem apostólica ao Sri Lanka e às Filipinas, 2015. Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/january/documents/papa-francesco_20150118_srilanka-filippine-incontro-giovani.html.

SOBRINO, Jon. Cristologia a partir da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1983.

SOBRINO, Jon. Onde está Deus? São Leopoldo: Sinodal, 2007.

Sepultamentos em vala comum no cemitério público Nossa Senhora da Conceição, no bairro Tarumã, na zona oeste da capital amazonense | Foto Ensaio Insulae de Raphael Alves/Amazônia Real