Neste artigo, à luz da carta do apóstolo Paulo aos Gálatas, Gilvander Moreira convida: "Sigamos com Opção pelos Pobres, batalhando pela superação das relações sociais escravocratas que perduram na sociedade atual"

Em São Paulo, capital, padre Julio Lancellotti abre as portas de igreja para abrigar a população em situação de rua inverno 2021 | Foto: padre Julio, via twitter

Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.

Eis o artigo o artigo publicado no IHU.

Na Carta aos Gálatas, livro do jubileu de ouro do mês da Bíblia – setembro - em 2021, o apóstolo Paulo busca manter a unidade entre as primeiras comunidades cristãs em uma imensa diversidade, mas assevera que a Opção pelos Pobres é inegociável. “Não esqueçam os pobres!” (Gl 2,10), Paulo chega a colocar na boca dos chefes da igreja de Jerusalém. Esses “pobres” eram concretamente os “irmãos” da Judeia que viviam em uma pobreza extrema, reinava a fome. Na comunidade cristã de Jerusalém, quando a distribuição se tornou maior do que a entrada ou a produção de recursos, chegou uma hora em que os bens acabaram e a fome se generalizou. Sem produção suficiente, não se pode consumir e/ou distribuir.

Em contexto de aumento da pobreza e de muita gente passando fome, sob a liderança do apóstolo Paulo e Barnabé, o espírito de comunidade nascido da fé em/de Jesus Cristo levou comunidades cristãs de outras regiões a fazerem doações para minorar a fome dos irmãos e irmãs. Isto era também uma expressão de unidade. O fato de pensar diferente não era motivo para ‘lavar as mãos’ como Pilatos diante do sofrimento de outras pessoas e comunidades.

Segundo a lei judaica, interpretada de forma rígida, um judeu não podia se sentar à mesa com um gentio. Então seriam duas Igrejas, a dos judeus e a dos gentios, sem a partilha ritual da Ceia do Senhor, mas com a partilha efetiva dos “irmãos” gentios para com os “irmãos” da Judeia. É Paulo defendendo fraternidade real e concreta com todos os empobrecidos, independentemente das opções religiosas ou ideológicas. Mais adiante, ao longo da sua argumentação buscando sempre afirmar a liberdade diante de tudo o que escraviza, o apóstolo Paulo afirma de forma lapidar: “Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo” (Gl 3,28).

Na Carta aos Gálatas transparece de forma muito forte Paulo rechaçando a realidade de escravidão, tanto das relações sociais escravocratas do império romano quanto da escravidão que tinha se tornado a Lei judaica sendo imposta inclusive sobre os não-judeus. Paulo repete várias vezes as palavras ‘escravo’, 'escrava’ e ‘escravidão’ ao longo da Carta aos Gálatas para enfatizar que: a) está abolida a diferença entre escravo e livre (Gl 3,28); b) quem está agarrado à Lei judaica continua escravizado; c) “éramos escravos” (Gl 4,1.3); d) “você já não é escravo, mas filho” (Gl 4,7); e) “vocês foram escravos de deuses” (Gl 4,8); f) “vocês querem recair na escravidão?” (Gl 4,9); g) na história houve “filhos da escrava Agar gerados para a escravidão” (Gl 4,22.23.24.25); h) “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres. Portanto, fiquem firmes e não se submetam de novo ao jugo da escravidão!” (Gl 5,1).

Paulo revela que o egoísmo e o individualismo estimulados pela ideologia dominante de uma sociedade escravocrata é estupidez e um corredor de morte para todos/as, pois leva “todos a se morderem e a se devorarem uns aos outros e até a destruição mútua” (Gl 5,15). Como intelectual de alto quilate Paulo não fazia uma análise ingênua, nem idealista, nem romântica da realidade conflituosa na qual os cristãos e as cristãs das comunidades da Galácia viviam. Certamente, Paulo percebia também que não apenas com solidariedade e cuidado dos pobres se superaria as relações sociais escravocratas estimuladas aos quatro ventos pela ideologia dominante do império romano e também por expressões religiosas e culturais que pavimentavam o caminho para a reprodução cotidiana das desigualdades sociais. Além de cuidar dos pobres sendo solidário/a, é preciso enfrentar os lobos vorazes e cruéis, muitas vezes, travestidos de bons samaritanos, seja no mundo da política, da economia ou da religião.

Em Gálatas, Paulo afirma à exaustão que todas as pessoas são livres e devem se comportar como pessoas libertadas e jamais recair nas garras de nenhum tipo de escravização. Paulo terminou sendo martirizado, porque quanto mais radicalizava sua missão mais revelava a incompatibilidade entre o projeto defendido por ele a partir da fé em Jesus Cristo e o projeto imperial ecoado pelos arautos da ideologia imperial. Ontem, o império romano e as religiões domesticadas e domesticantes que serviam aos interesses da classe dos de cima. Atualmente, o sistema capitalista, que, de mil formas, empobrece, violenta e mata o povo, a mãe terra, as fontes de água e todos os ecossistemas. O apóstolo Paulo, nos dias de hoje, no nosso meio, certamente diria que enquanto perdurar a estrutura fundiária pautada no latifúndio e no agronegócio com política econômica capitalista neocolonial, com Estado subserviente aos interesses das grandes mineradoras e do grande empresariado do campo e da cidade, não teremos a superação da pobreza, da fome, da miséria e de tantas escravizações que se reproduzem cotidianamente e explodem em cenas dramáticas, por meio do feminicídio, do racismo estrutural, da homofobia, de expressões religiosas burguesas que desencarnam a fé cristã, espiritualizam a mordência histórica de Deus que, por amor infinito, assumiu a condição humana em Jesus Cristo. Portanto, acolher a mensagem do apóstolo Paulo na Carta aos Gálatas, atualmente, implica em se comprometer com os/as injustiçados/as em todas suas lutas libertárias justas e necessárias.

Paulo não quer somente fraternidade "espiritual" ou de amizade, mas exige principalmente fraternidade econômica [2], política e cultural. Não agrada ao Espírito de Deus pessoas que se encontram para a eucaristia ou cultos aos domingos, mas que durante a semana são umas opressoras das outras. Paulo quer superar as oposições de classes. Se ricos e pobres, judeus e não-judeus, homens e mulheres, trabalhadores e patrões e… comem em lugares diferentes, moram em casas de qualidades muito diferentes, o cristianismo terá um conteúdo diferente para cada grupo e não haverá realmente uma comunhão. É hipócrita e cínica uma comunidade e sociedade na qual uns poucos se banqueteiam, enquanto a maioria passa fome; na qual uns têm casas próprias luxuosas e a maioria geme debaixo da pesadíssima cruz de aluguéis ou da humilhação que é sobreviver morando de favor na casa de parentes ou ainda sob o frio e os riscos da rua; na qual uns recebem remunerações milionárias, enquanto milhões sobrevivem só com salário mínimo ou com migalhas do trabalho informal. É escravocrata uma sociedade na qual uns vivem luxuosamente, enquanto milhares sobrevivem do/no lixo; na qual uns detêm o muito poder econômico, político, midiático e religioso e as massas são subjugadas. Igrejas que se apegam e casam com o poder opressor trocaram o Evangelho de Jesus Cristo por uma aliança com a mentira, coisa diabólica.

Em Gálatas, Paulo defende uma comunhão eclesial que seja antes de tudo comunhão integral, fruto de condições materiais que garantam os corpos estarem lado a lado, com respeito à dignidade de todos/as, e comendo da mesma comida, partilhando alegrias e angústias. Paulo nos faz recordar o padre Alfredinho [3], da Fraternidade do Servo Sofredor, que gostava de dizer: “Os ricos se salvarão quando aprenderem a passar fome”.

Ontem, Gálatas; hoje, nós. “E agora, José?” Paulo, em Gálatas, aponta que quem deseja seguir a Jesus deve armar-se de disponibilidade para a cruz, ou seja, tornar próprias as disposições daquele que o precede, identificando seu projeto com o do Mestre. Jesus não temeu ser considerado um fora-da-lei pela sociedade estabelecida. E seus seguidores: o que mais temem? Paulo nos convida a ver na cruz injusta de cada um/a de nossos irmãos e irmãs, próximo ou distante, um crime hediondo contra a humanidade e contra Deus.

Enfim, terminamos este texto no qual buscamos pescar raios de luz e força para a caminhada cristã pessoal e comunitária, apontando se não o maior, um dos maiores perigos da atualidade: "Penso que o maior perigo para a Pedagogia de hoje está na arrogância dos que sabem, na soberba dos proprietários de certezas, na boa consciência dos moralistas de toda espécie, na tranquilidade dos que já sabem o que dizer aí ou o que se deve fazer e na segurança dos especialistas em respostas e soluções. Penso, também, que agora o urgente é recolocar as perguntas, reencontrar as dúvidas e mobilizar as inquietudes." [4] Inspirados/as por Paulo, em Gálatas, sigamos com Opção pelos Pobres, batalhando pela superação das relações sociais escravocratas que perduram na sociedade atual.

Bibliografia:

LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

Notas:

[2] Dom Moacyr Grechi, ao investigar denúncias de torturas de trabalhadores rurais bóias-frias, disse: “Quero uma reunião somente com os trabalhadores, pois junto com os patrões eles não estarão livres para dizer a verdade.”

[3] Fredy Kunz, o inesquecível padre Alfredinho. Sua trajetória espiritual entre os excluídos está narrada em seus livros, muitos traduzidos no exterior: A sombra do Nabucodonosor, A Ovelha de Urias, A Burrinha de Balaão, A Espada de Gedeão e O Cobrador.

[4] LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 8.

1 – Carta aos Gálatas - Bloco 1

2 – Carta aos Gálatas - Bloco 2

3 – Carta aos Gálatas - Bloco 3

4 – Carta aos Gálatas - Bloco 4

5 – Carta aos Gálatas - Bloco 5

6 – Senhora de Guadalupe, rogai por nós! Reflexão. Gálatas 4,4-7 e Lucas 1,39-47. Manoel Godoy – 12/12/20

7 – Live de lançamento do livro: “Carta aos Gálatas: até que Cristo se forme em nós” (Gl 4,19).

8 – Canto da Carta aos Gálatas (Paródia) – Mês da Bíblia/2021 (setembro) – CEBI-MG – 11/7/2021

9 – O texto-base do Mês da Bíblia 2021