Felicio Pontes
24/11/2020

O Sínodo para a Amazônia e os direitos dos povos da amazônicos: É possível sonhar com a passagem mais célere de uma sociedade colonialista para uma sociedade pluralista.

Por Felício Pontes Jr.* | 6ª Semana Social Brasileira

O Documento do Sínodo para a Amazônia confirma a evolução da Igreja Católica na promoção dos direitos ambientais e dos povos e comunidades da região. O primeiro documento dos bispos da Amazônia brasileira foi a Carta de Santarém de 1972. Nela, havia a denúncia profética contra o modelo de desenvolvimento imposto pelo regime ditatorial que não levava em consideração nem o meio ambiente nem seus habitantes.

O encontro de Santarém foi o marco inicial. Na proporção em que aumentava a degradação ambiental e social, cada novo documento tornava-se mais contundente. Merecem destaque os encontros do episcopado latino-americano, em particular os Documentos de Puebla, Santo Domingo e Aparecida.

O ponto culminante foi a encíclica Laudato Sí’ (2015). A Amazônia, mencionada duas vezes, é retirada da periferia do Planeta para ser conduzida ao centro. Sua participação na regulação climática mundial une ciência e religião. Sua degradação afeta os povos da floresta e de todos os continentes. Sua recuperação é urgente.

O Documento do Sínodo para a Amazônia prosseguiu nessa evolução. Ele contém três pilares jurídicos inovadores com o intuito de salvar a Amazônia e seus povos: (i) a adoção do Pluralismo; (ii) o respeito aos indígenas isolados; e (iii) o reconhecimento do direito da natureza.

O Pluralismo reconhece a sociedade como pluriétnica e intercultural. Na prática significa respeitar os direitos das minorias. Trata-se de uma nova relação sociedade hegemônica-minorias, que se realiza através da interculturalidade (33, 55, 98). A doutrina Colonialista que defendia “a imposição de certos modos de vida de alguns povos sobre outros, seja economicamente, culturalmente ou religiosamente” (55), não mais prevalece. “No momento atual, a Igreja tem a oportunidade histórica de se diferenciar das novas potências colonizadoras (...)” (15). A doutrina Pluralista está baseada em três direitos fundamentais: a autodeterminação; a demarcação dos territórios; e a consulta prévia, livre e informada (47).

Pela autodeterminação, os povos e comunidades “deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural” (Convenção 169/OIT, art. 7º, 1). Assim, não cabe impor modelos de desenvolvimento, ainda que seja da maioria, sobre as minorias étnicas ou culturais.

A demarcação dos territórios é tão fundamental que deve ser encarada como direito alicerce que sustenta os demais direitos, como saúde, educação, segurança alimentar, cultura… E não se trata de um direito restrito aos povos indígenas. “Mestiços, ribeirinhos, camponeses, quilombolas e/ou afrodescendentes e comunidades tradicionais” são sujeitos desse mesmo direito (n. 47). Sua importância pode ser sintetizada na frase da líder indígena Sônia Guajajara diante do Congresso Nacional em 2014: “Nós não negociamos direitos territoriais porque a terra, para nós, representa a nossa vida. A terra é mãe, e mãe não se vende, não se negocia. Mãe se cuida, mãe se defende, mãe se protege”.

O direito à consulta prévia, livre e informada é garantia de que todas as vezes que um projeto de lei ou um plano do governo ou de empresa, como rodovia, hidrelétrica, ferrovia, mineração…, atingir um povo indígena, quilombola ou tradicional, estes devem ser consultados antes de o projeto/plano ser aprovado (Convenção 169/OIT, art. 6º, 1, a). Ele é o meio pela qual se exerce um verdadeiro diálogo intercultural.

O segundo pilar jurídico inovador trata dos direitos dos Povos Indígenas em Isolamento Voluntário (PIAV) (49, 50). Neste ponto a Igreja apoia os documentos internacionais que permitem a proteção aos índios isolados, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); a Convenção 169/OIT (1989); e a Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas (2007).

O Documento do Sínodo para a Amazônia determinou a responsabilidade das Igrejas locais “em ações específicas de defesa de seus direitos, em ações de incidência para que os Estados assumam a defesa de seus direitos através da garantia legal e inviolável dos territórios que tradicionalmente ocupam” (50).

Por fim, no terceiro pilar jurídico, o Documento do Sínodo para a Amazônia dá um salto importantíssimo na defesa do meio ambiente: reconhece os direitos da natureza (74, 84). O caminho para esse reconhecimento já estava aplainado pela encíclica mais lida na História da humanidade quando diz que “a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas” (LS 68).

Em se colocando em prática os ensinamentos dos padres sinodais, é possível sonhar com a passagem mais célere de uma sociedade colonialista para uma sociedade pluralista.

*Felício Pontes Jr. é procurador regional da República. Formado em Direito pela Universidade Federal do Pará, é mestre em Teoria do Estado e Direito e assessor da Repam-Brasil