SSB
03/05/2021

A economia moderna também pode ser lida como uma fuga da virtude em nome da utilidade, portanto, uma fuga do Bem Comum em nome dos bens privados

Campanhas Mãos Solidárias Pernambuco e Periferia Viva Contra o Coronavírus distribuíram, nas comunidades da Região Metropolitana do Recife, 8 toneladas de produtos agroecológicos da Reforma Agrária doados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pela ONG Centro Sabiá | Foto: Comunicação MST

"O cuidado, cada vez mais necessário, crescerá em quantidade e qualidade se primeiro crescerem a estima e os salários", escreve o economista italiano Luigino Bruni, professor do Departamento de Jurisprudência, Economia, Política e Línguas Modernas da Universidade Lumsa, de Roma, em artigo publicado por Avvenire, 01-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini e publicado no IHU.

Eis o artigo.

Um dos legados da pandemia é o desvelamento da qualidade do trabalho de cuidado e de suas virtudes. Virtude, uma palavra que tínhamos esquecido, que com o tempo havia assumido um tom um tanto antiquado, voltou ao centro da cena pública e ética. Finalmente, vimos muitas coisas que antes não víamos ou não víamos o suficiente, e entre essas muitas, tantas virtudes, principalmente em trabalhos onde não conseguíamos vê-las.

Quando, no início do século XIX, a primeira revolução industrial estava mudando radicalmente o mundo do trabalho, os melhores economistas começaram a formular teorias sobre como remunerar o trabalho. Antes deles, o trabalho que passava pelo 'mercado' dizia respeito a uma pequena minoria de pessoas. Quase todas as mulheres estavam fora disso, nos campos os trabalhos eram exercidos em regime de escravidão onde não se vendiam horas de trabalho mas homens, os aristocratas e nobres não trabalhavam e interpretavam o seu não trabalho como privilégio e liberdade: "nascer abastado me fez livre e puro, nem me deixou servir para outra coisa senão a verdade. Mil francos de renda valem mais que 10.000 provenientes de um emprego" (Vittorio Alfieri, 'Opere', t. VI).

Entre os economistas que tentaram as primeiras reflexões sobre os salários também está Melchiorre Gioja, que em seu tratado 'Sobre mérito e recompensas' em 1818 escrevia: "Os honorários de um juiz costumam ser mais altos do que os de um professor de direito, embora para este último se exige um maior conhecimento. A diferença entre esses dois honorários representa o preço da maior virtude exigida em um juiz. Em geral, os honorários crescem em razão dos abusos que podem ser cometidos nos cargos, pois o número de pessoas que oferecem certeza de não abusar deles diminui em razão dessa possibilidade” (Volume 1).

Para Gioja, portanto, o honorário devia ser diretamente proporcional à virtude exigida por aquela específica atividade. Quanto mais escassa a virtude necessária para fazer bem um tipo de trabalho, mais ela deve ser paga; quanto mais você tiver que resistir à tentação da corrupção, mais você tem que ser remunerado. Uma teoria econômica da escassez, então, mas onde ao contrário da teoria dominante já em sua época, o elemento escasso é a virtude. Amarrar o mercado e o trabalho à virtude era a tentativa para vincular a nova sociedade comercial à ética das virtudes que tinha governado, por dois milênios, a melhor parte do espírito europeu meridiano - aquele dos gregos, de Cícero e Sêneca, dos pais da Igreja, dos mercadores italianos, do humanismo civil - e as reformas dos Iluminismos. A nova economia, embora centrada no lucro vil, ainda podia ser profundamente moral, já que a remuneração do trabalho estava ancorada às virtudes.

Gioja, então, herdeiro e inovador da tradição italiana da economia civil, também sabia muito bem que as virtudes, especialmente as verdadeiramente preciosas, não são criadas com 'incentivos', mas são reconhecidas com 'prêmios': “O dinheiro, ou em geral, as riquezas materiais não são suficientes para comprar qualquer tipo de serviço virtuoso; há muitos que não podem ser obtidos senão dando em troca riquezas ideais, isto é, substituindo as moedas honorárias às moedas metálicas”.

Poucos anos depois do livro da Gioja, o conceito de Bem Comum foi descartado, considerado muito paternalista, hierárquico, iliberal. A utilidade subjetiva substituiu a virtude. Tendo renunciado a uma ideia compartilhada do Bem, cada um só pode buscar seu próprio bem-utilidade dentro das relações de troca individuais com outros concidadãos. O mercado é, de fato, o admirável mecanismo que torna possível a vida em comum na ausência de uma ideia de bem prevalecente, porque alinha e harmoniza as infinitas ideias de bem privado dos agentes individuais, deixando-as diferentes entre eles. É esta a ausência da metáfora da mão invisível: "Nunca vi algo de bom ser feito por aqueles que pretendiam fazer trocas pelo Bem Comum" (Adam Smith, “A riqueza das nações”, 1776).

A economia moderna também pode ser lida como uma fuga da virtude em nome da utilidade, portanto, uma fuga do Bem Comum em nome dos bens privados. No entanto, por trás da cada vez mais evidente e intolerável injustiça salarial em relação às trabalhadoras e trabalhadores do cuidado esconde-se também o eclipse da ética das virtudes. Por quê? Em primeiro lugar, os trabalhos virtuosos não são entendidos em sua 'utilidade' se não estiverem ligadas à antiga ideia do Bem Comum. A contribuição de uma enfermeira ou de um professor não é inteiramente reconduzível à soma dos bens privados dos pacientes, das crianças e das suas famílias. O cuidado de cada pessoa é uma espécie de bem público, no mínimo bem meritório, cujos benefícios (e custos) vão muito além da esfera interna dos contratos e do benefício mútuo.

Mas se eliminarmos a categoria do Bem Comum, ou a banalizamos e ridicularizamos, quando formos avaliar a 'contribuição marginal' de uma hora de trabalho de cuidado, iremos simplesmente fazer as contas de forma errada e estabeleceremos salários errados e injustos. Todos percebem, hoje mais que um ano atrás, a necessidade urgente de mais e melhores investimentos em saúde, escola, cuidado. Devemos em breve recomeçar a ver esses trabalhos com uma lente mais adequada - e as teorias nada mais são do que lentes para olhar a realidade - e, portanto, remunerar o cuidado com salários mais altos e com maior estima social. Porque os salários dependem da estima social, e o próprio salário também tem um componente intrínseco que diz respeito a quem trabalha. Sem 'aumentos' materiais e imateriais, os melhores jovens não se voltarão para essas profissões e continuarão a se orientar demais para outros empregos que hoje são (muitas vezes em excesso) estimados e remunerados. O cuidado, cada vez mais necessário, crescerá em quantidade e qualidade se primeiro crescerem a estima e os salários.