SSB
10/09/2020
Imagem: Shutterstock

A defesa da liberdade religiosa, de terra, teto e do trabalho pode constituir uma prática madura de espiritualidade e cidadania

Por Karla Maria* | 6ª SSB

Kailane Campos acabara de sair do culto em um terreiro de candomblé na Via da Penha, no Rio de Janeiro. Estava toda vestida de branco com seu turbante, usado nas religiões de matrizes africanas como proteção do Ori (cabeça em Yoruba). Caminhava ao lado de sua avó com seus 11 anos de idade quando foi agredida por dois homens. Um deles jogou uma pedra, que acabou atingindo-a. Era um domingo, 14 de junho de 2015.

 “O que chamou a atenção foi que eles começaram a levantar a Bíblia e a chamar todo mundo de ‘diabo’, ‘vai para o inferno’, ‘Jesus está voltando’", contou a mãe de santo Káthia Marinho, avó de Kailane, na ocasião. O fato, não isolado, foi registrado como preconceito de raça, cor, etnia ou religião e também como lesão corporal.

Em fevereiro deste atípico 2020, um grupo de pelo menos 30 pessoas atacou um terreiro de umbanda, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Um dos praticantes da religião foi espancado e teve alguns dentes da boca quebrados durante o ataque. Os pais e mães de santo, vítimas do ataque, acreditam que o motivo seja intolerância religiosa.

O artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de 1988, aquele que diz que todos são iguais perante a lei, no parágrafo 6º define que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

A leitora e o leitor podem estar cansados de – nos últimos tempos – acessar a Constituição para atestar o quanto seus direitos estão sendo usurpados. Os números atestam a retirada de direitos. Dados coletados pelo Ministério dos Direitos Humanos, através do Disque 100, revelam que, entre 2015 e 2017, a cada 15 horas foi registrado um relato de agressão por motivo de intolerância religiosa.

Não há pesquisas mais recentes sobre o mesmo tema e o Ministério Público Federal tem exigido provas de que o governo federal vem atuando – de alguma maneira – no combate à intolerância religiosa. Em artigo publicado na imprensa, o procurador da República Jaime Mitropoulos afirmou que estes tipos de ataque são crimes de ódio contra humanidade que vêm sendo praticados em série. “A reiterada violação aos direitos fundamentais vem interferindo na vida de comunidades que estão sendo impedidas de expressar sua fé e de viver de acordo com suas tradições e cultura”.

O ecumenismo e o diálogo inter-religioso são elementos fundamentais no combate às violências. Acolhe as diferenças de uma maneira pacífica

Para a teóloga e pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso são elementos fundamentais no combate a essas violências, já que compõem características de uma sociedade democrática, “que é aquela que acolhe as diferenças de uma maneira pacífica e também as valoriza. Para construir a paz social, a gente precisa aprender a dialogar, a conversar e a acolher e respeitar as nossas diferenças para que a gente possa de fato exercitar a nossa cidadania em um contexto de democracia. É uma responsabilidade de todas as pessoas, de fé ou sem fé”.

Há, contudo, algumas religiões que ainda tratam a mulher, membros da comunidade LGBTQ+ e povos tradicionais de modo desrespeitoso, impactando a democracia brasileira. Para a teóloga Lusmarina, que nasceu em uma família católica, teve os primeiros passos na Igreja Batista e ordenou-se pastora luterana, tais comportamentos acontecem porque há em alguns casos uma interpretação bíblica discriminatória.

“No cristianismo – sem generalizações, com risco de ser injusta – há setores das Igrejas cristãs que fazem uma interpretação bíblica parcial, porque na medida em que a Bíblia oferece material de cunho patriarcal e misógino, por outro lado oferece material que contradiz esse tipo de perspectiva, então quando as Igrejas adotam uma perspectiva que inferioriza as mulheres ou a comunidade LGBTQ+, as Igrejas estão trabalhando a partir de uma interpretação bíblica que é discriminatória e causa problemas bastante sérios, não só nas comunidades e suas famílias, mas no seio da própria sociedade”, avalia.

As interpretações bíblicas discriminatórias, patriarcais e violentas são históricas

As interpretações bíblicas discriminatórias, patriarcais e violentas são históricas. Marcelo Barros, o monge beneditino que há décadas trabalha pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas, nos explica o quanto tal violência está historicamente ligada ao discurso religioso. “Nós vivemos no Brasil, na América Latina, em que há cinco séculos o cristianismo veio com os conquistadores, entrou e legitimou a violência da conquista como sendo religiosa, então este mundo que está aí, de racismo, patriarcalismo, machismo, escravidão social, isso tudo foi construído em nome de Jesus Cristo, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. [...], então agora nós temos que como cristãos desconstruir e construir outra coisa”.

Como então construir, seria possível? O monge natural de Camaragipe, na grande Recife, em Pernambuco, o primeiro de dez irmãos de uma família de operários, que cresceu na Igreja Católica e aos 21 anos de idade foi convidado por dom Helder Câmara a ser seu assessor para relações entre Igrejas cristãs e de outras denominações religiosas, conta que para construir é preciso dialogar e superar o fundamentalismo na sociedade, observando em especial, o comportamento das lideranças religiosas, das religiões. 

O fundamentalismo é uma expressão e consequência da insegurança.

“O fundamentalismo é uma expressão e consequência da insegurança. Em assunto que eu tenho segurança, você vai me ver calmo, tranquilo, aberto, disponível a escutar você, a valorizar você, porque eu tenho segurança, eu sei o terreno onde estou pisando, agora quando você tocar em um ponto em que eu estiver inseguro... Digamos que eu estou vivendo uma relação afetiva problemática e estou sendo violento, e aí você me fala sobre relação de gêneros, imediatamente você vai perceber que eu vou defender posições rígidas, porque não tenho segurança de caminhar naquele terreno, então quando eu pego a letra da lei, eu me protejo, a lei é para mim como o casco da tartaruga”.

Para a pastora Lusmarina, o fundamentalismo é uma pretensão de hegemonia, de verdade absoluta, a partir da qual uma sociedade inteira tem que formatar o seu comportamento, a sua ética, suas ações, princípios e maneira de pensar, mas não só. Para ela, o fundamentalismo se dá a partir de um projeto político. “Os fundamentalismos que nós estamos experimentando hoje não se sustentam sozinhos, vêm acompanhado dos fundamentalismos econômico, social e político. Todos esses fundamentalismos respondem a um modelo de sociedade, de Igreja que está tentando ser imposto para todo mundo”.

Os fundamentalismos que nós estamos experimentando hoje não se sustentam sozinhos, vêm acompanhado dos fundamentalismos econômico, social e político.

A fala da teóloga luterana materializa-se no bordão do presidente Jair Bolsonaro, usado em toda sua campanha eleitoral e ainda hoje nas lives que realiza mensalmente. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, uma apropriação de brado da Brigada de Infantaria Paraquedista do Exército, como explica o coronel Cláudio Tavares Casali em artigo para o jornal Gazeta do Povo de 24 de outubro de 2018.

O slogan surgiu no final da década de 1960, durante a ditadura militar, pouco depois do decreto do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Mas não é só de slogan que o manifesto desejo de homogeneização do credo e da cultura brasileira se apresentam. Executivo e Legislativo têm atuado de maneira organizada para criar um único Brasil.

“Atualmente há uma instrumentalização da religião para um projeto político específico. O presidente, por exemplo, vive usando um texto bíblico de João 8,32: “E conhecereis a verdade e a verdade os libertará”. Este é um versículo que está sempre no discurso do presidente da República. Através da política há uma manipulação do texto bíblico para se comunicar e convencer a população de que aquele projeto responde à vontade de Deus, tanto que você escuta falarem o “ungido de Deus, tem até Messias no nome”. Há um perigo muito grande quando isso acontece, porque a política é a preocupação que se tem com a polis, com a convivência de todas as pessoas, de todas as religiões e daqueles que não têm religião”.

Há uma instrumentalização da religião para um projeto político específico.

Um estado laico, democrático, deveria garantir que o seu povo possa exercer a sua fé através de diferentes religiões. Quem sente a perseguição na pele entende que a intolerância contra as religiões de matriz africana tem outro nome. “Se observamos bem, perceberemos que o problema é racismo religioso e não intolerância. Não apenas no Brasil, mas aqui por sermos o país mais negro fora da África, é mais gritante ainda”, explica Adriana Toledo, a Iyá Adriana de Nanã, Iiyalorixá zeladora do Ilê Axé Omó Nanã.

A escravidão no Brasil, abolida apenas em 1888, e permanece sendo cruel. “Eu sempre entendi o candomblé como um espaço de resistência. Foi criado pensando na manutenção, para evitar a extinção da nossa cultura e do culto à nossa ancestralidade”, conta a Iyá Adriana de Nanã em seu depoimento na série documental Guia de Revoltas Negras, produzida pelo Coletivo Lentes Malungas, disponível no YouTube.

Para ela, “quando um grupo escolhe não abrir mão da sua ancestralidade e não adere à religião do seu dominador, mesmo fingindo ser batizado e indo à missa todos os domingos, [este grupo ou indivíduo] escolhe ainda assim manter no fundo do seu quintal, as folhas de referência que tinha na África, para manter o culto, a folha de referência de cada orixá, a construção de atabaques e procura manter na memória as danças, as cantigas, os idiomas. É um movimento político poderoso, porque sem isso eu não estaria aqui hoje”.

Adriana também é ativista pela garantia dos direitos das religiões de matriz africana e membro da Frente Inter-religiosa Dom Evaristo Arns por Justiça e Paz.

Lutar contra o racismo talvez seja uma das grandes ações conjuntas que todas as religiões podem realizar em defesa da dignidade da vida de todos os homens e mulheres negras. Lutar, aliás, é um verbo comum aos que ocupam as fileiras da 6ª Semana Social Brasileira (6ª SSB), que propõe, a partir da convocação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), promover junto às pastorais sociais e movimentos populares um “Mutirão pela Vida” plural e étnico para a construção de uma sociedade sem desigualdades, discriminações e preconceitos, propondo e assumindo ações concretas para a conquista da terra, teto e trabalho para todas as pessoas, especialmente as mais pobres, que vivem nas periferias existenciais e geográficas do mundo, parafraseando o papa Francisco.

Lutar contra o racismo talvez seja uma das grandes ações conjuntas que todas as religiões podem realizar em defesa da dignidade da vida de todos os homens e mulheres negras.

“Não conseguimos pagar a dívida histórica que temos com essas pessoas. O racismo está entranhado na história, na cultura brasileira. As violências que se praticam com as religiões de matriz afro-brasileira são consequência deste racismo que está presente e introjetado em nossa cultura”, lamenta a pastora Lusmarina.

O cenário de perseguição racista e religiosa, com discursos de ódio e atos violentos, é, para Magali Cunha,doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e integrante da Associação Internacional Mídia, Religião e Cultura, fomentado pela proliferação de notícias falsas, muitas vezes compartilhadas por lideranças políticas e religiosas. “Pelas minhas pesquisas, muita coisa referente à perseguição religiosa de cristãos e cristãs é replicada por personalidades e influenciadores, e muita coisa que é compartilhada não é verdadeira para alimentar a intolerância com grupos de matriz afro-brasileira, com islâmicos, hindus, então muitas fake news acabam servindo às vezes, e lamentavelmente intencionalmente, para criar animosidade entre grupos religiosos”, diz a professora, que também é membro do coletivo Bereia, que tem um trabalho de verificação de notícias.

É neste cenário de muitas inseguranças e inverdades que nos perguntamos como aqueles que professam as diferentes religiões podem ser sujeitos transformadores e construírem uma sociedade democrática, de paz. Em entrevista a esta reportagem em janeiro de 2019, Frei Betto falou sobre o papel das religiões e seus líderes em nosso país. Depende de que líderes estamos falando. Dos que defendem os direitos humanos e abraçam os valores do Evangelho, o papel deles é incutir tais valores nos mais jovens e reforçar todos os movimentos sociais dispostos a construir um país mais justo e igualitário”.

Falar em igualdade no Brasil, conhecido por ser um dos países mais desiguais do mundo, onde se mata pela cor, pelo credo, parece utopia, e é neste cenário que feito trabalho de formiguinha, salpicam pelo país lideranças pastorais, de movimentos, gente que feito girassol se movimenta entorno da luz e luta por terra, teto, trabalho. Marcelo Barros, de forma amorosa, deixa uma pista do que se espera das religiões e de seus praticantes, que “deveriam se distanciar de projetos de poder”.

“Se o núcleo mais profundo da mensagem cristã é o amor, e o amor solidário, não o amor como sentimento, mas o amor como realidade, como prática de vida, princípio, modo de ser, então o cristianismo e todas as religiões têm uma função essencial de condução de uma humanidade pós-pandemia, não que o cristianismo vá conduzir. Ninguém está querendo uma cristandade, um regime social religioso, não. É laico, mas as religiões têm uma dívida, um débito”.

Que o diálogo sincero entre homens e mulheres de diversas religiões gere frutos de paz e justiça.

Como recorda o papa Francisco, “muitos pensam de modo diferente. Sentem diferente. Buscam a Deus ou encontram a Deus de diversas maneiras, e nesta multiplicidade de religiões há uma só certeza que temos: todos somos filhos de Deus”. [...]  “Que o diálogo sincero entre homens e mulheres de diversas religiões gere frutos de paz e justiça”.

Em tempos de resistência,“o amor como prática de vida” e a luta por direitos demonstram ser a melhores práticas de uma religiosidade autêntica, de uma espiritualidade madura.

*Karla Maria é jornalista e autora dos livros-reportagem Mulheres Extraordinárias (2017), Irmã Dulce, a santa brasileira que fez dos pobres sua vida (2019) e O Peso do Jumbo, histórias de uma repórter de dentro e fora do cárcere (2010), todos pela Paulus Editora.