Cozinhar, criar os filhos, manter a casa: tais trabalhos essenciais ao funcionamento do mundo são amplamente realizados por mulheres. Chegou a hora de valorizá-los — e fazê-lo poderá ser primeiro passo para uma virada civilizatória

Ilustração Sally Deng

Por Isabela Callegari | Outras Palavras

Esse artigo tem uma contextualização particular, que eu não poderia deixar de apresentar. Escrevo após duas noites sem dormir, e após mais de um ano de tantas outras noites iguais, porque de madrugada tenho um trabalho. Trabalho na atividade noturna de cuidar do meu filho, o que é também um trabalho diurno em tempo integral, junto com os outros trabalhos de cuidar da casa e da comida. Para escrever esse artigo, pedi a ajuda de outras pessoas, que realizaram por algumas horas o trabalho de cuidar dele. Escrevo, portanto, motivada pela notícia de que a Argentina deu um passo muito importante em direção à maior justiça social, ao decretar que mulheres possam adicionar de 1 a 3 anos de cuidados com cada filho ao tempo de contribuição para a aposentadoria. Com isso, o país vai ao encontro dos vizinhos latino-americanos, Uruguai e Chile, que já possuem leis semelhantes[i].

Se para alguns esse pode parecer um tema marginal e de pouca relevância, isso é assim justamente porque a economia capitalista e o tipo de desenvolvimento que ela enseja são muito bem-sucedidos em desvalorizar tudo o que é central para a vida e inclusive, para a própria economia capitalista. O tratamento setorial e posterior que costuma ser destinado ao meio ambiente no pensamento econômico e nas políticas macroeconômicas, é o mesmo reservado à chamada Economia do Cuidado, que normalmente aparece nas teorias e políticas apenas de forma pontual e representada pela reivindicação de medidas voltadas à equidade de gênero.

No entanto, tanto o ambiente no qual estamos inseridos, quanto os trabalhos de cuidado necessários à reprodução social, são basilares para que a própria economia aconteça. Isto é, não podem ser tratados de forma posterior ou paliativa, porque são os elementos que possibilitam qualquer existência social e econômica. A acumulação capitalista, inclusive, se dá pela expansão constante não apenas da economia de mercado, mas primordialmente do que está fora dela. Assim, conforme propõe a Economia Ecológica, aquilo que a economia hegemônica chama de externalidades, supostamente meros efeitos colaterais do funcionamento da economia, deveriam ser o objeto primordial do estudo econômico. Ou seja, a consideração das externalidades, ou de como a economia capitalista utiliza e afeta o meio ambiente e o trabalho de reprodução social não pago, deveria vir fundamentalmente antes do estudo de internalidades, a parte da economia interna ao sistema de preços[ii].

Uma das diversas consequências da pandemia foi explicitar algo que a Economia Feminista já vinha alertando há tempos, o fato de que o nosso tipo de desenvolvimento econômico está nos levando a uma crise do cuidado. Por um lado, há um aumento da demanda por cuidados, advindo do envelhecimento da população, e de novas epidemias e doenças, como ebola, HIV, zika e covid-19, propiciadas pelo crescimento urbano e industrial desordenado e em desequilíbrio com o ambiente. E por outro, há a pressão competitiva nas nossas vidas e a necessidade de despender tempo na economia monetizada, algo que se acirra no contexto neoliberal, levando ao desinteresse, à inabilidade e à falta de tempo e desejo de se dedicar ao cuidado dos outros e de si.

De forma resumida, a Economia do Cuidado pode ser dividida em (i) trabalhos diretos, que são aqueles diretamente relacionados à outra pessoa, como, por exemplo, dar comida, dar banho, ajudar no dever de casa, levar alguém ao médico; e (ii) trabalhos indiretos, aqueles necessários à manutenção de si e dos demais, mas que não constituem uma atividade direta com o outro, como cozinhar, lavar, limpar, ir ao mercado, e, no contexto rural, adicionam-se tarefas como abastecimento de água, fazer fogo, plantar e colher. É também estratificada em (i) trabalho não pago, que pode ocorrer em contexto doméstico ou no voluntariado; e (ii) trabalho pago, que pode ser formal ou informal, englobando os setores de saúde, serviço social e educação, bem como o de trabalhadoras/es domésticos e o de cuidados pessoais. Os cuidados podem ser direcionados a crianças, idosos, pessoas com deficiência, doentes, temporariamente desabilitadas e ao autocuidado[iii].

Apenas com relação ao trabalho de cuidado não pago, as estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) são de que as mulheres realizam globalmente 76,2% desse trabalho, e que ele representa 16,4 bilhões de horas trabalhadas todos os dias, o que seria equivalente à 2 bilhões de pessoas trabalhando 8 horas por dia de forma não paga. Caso isso fosse remunerado a um salário mínimo global estimado, essa renda resultaria em cerca de 9% do PIB mundial. Já o trabalho de cuidado pago representa aproximadamente 11,5% do total dos empregos globais, e as mulheres seguem sendo maioria nessa categoria, embora o percentual caia para 65,4%[iv].

No entanto, não se trata de internalizar o que está fora do mercado. Mesmo para aqueles que defendem um paradigma reformista, não seria possível nem desejável mercantilizar muitos dos trabalhos de cuidados. O cuidado direto, por exemplo, é inerentemente intensivo em trabalho, ou seja, não pode ou não deve ser mecanizado ou comodificado. São atividades relacionais, nas quais o que importa é justamente a qualidade do vínculo estabelecido e do trabalho executado. Da mesma forma, não é possível falar em aumento de produtividade, algo sempre perseguido pelas políticas macroeconômicas, com vistas ao crescimento econômico, pois se é o tempo gasto com o outro que constitui o cuidado, o próprio conceito de produtividade em muitas das atividades aqui não faria sentido. Pelos mesmos motivos, há também limites evidentes aos ganhos de escala nesses setores[v].

Assim, há um espaço limitado para o aumento de lucros pelo setor privado, que só proverá tais atividades às custas da sua qualidade, isto é, do bem-estar da população. Ao mesmo tempo, são trabalhos basais para a vida em sociedade e que, nos marcos do capitalismo, já ocorrem por meio da exploração invisibilizada e precarizada da força de trabalho feminina, o que penaliza enormemente as mulheres e o próprio exercício dos cuidados. Portanto, são atividades que necessitam de regulação e investimento estatal e que geram inúmeros benefícios em termos de aumento de bem-estar, diminuição da desigualdade de gênero, raça, renda e da pobreza em geral, além de serem relativamente pouco intensivas em utilização de recursos e geração de lixo e emissões, o que também coaduna com nossos objetivos ambientais.

Contudo não é possível concluir que políticas voltadas aos cuidados gerem inequivocamente crescimento econômico, dada a possível realocação de trabalhadoras/es para as referidas atividades de menor produtividade. Por outro lado, sabemos que é viável promover investimentos e estímulos fiscais que gerem crescimento, baseado em baixa criação de empregos, aumento da concentração de renda, de outras desigualdades estruturais e de destruição ecossistêmica[vi]. Esse paralelo reforça a necessidade premente de dissociarmos a busca por desenvolvimento inclusivo, ecologicamente correto e com aumento de bem-estar, do crescimento do PIB como fim em si mesmo.

As propostas advindas da Economia Feminista voltadas aos cuidados passam pela promoção (i) do reconhecimento social e econômico desses trabalhos;  (ii) da redução da carga de trabalho desnecessária, por meio de tecnologia, bens e serviços públicos; (iii) de estratégias para a redistribuição mais equitativa da prática de cuidados entre os gêneros, incluindo a universalização das flexibilizações trabalhistas que visam possibilitar o cuidado dos dependentes, e a diminuição geral de horas de trabalho no mercado para maior tempo para cuidados domésticos; (iv) da recompensa justa e com trabalhos dignos na área dos cuidados; e (v) da representação dessas trabalhadoras e trabalhadores na esfera política.

Com isso, entendemos que o reconhecimento de tempo de cuidado para a aposentadoria deve ser sim fato amplamente comemorado, mas tal medida representa apenas uma compensação mínima pelos anos em que as mulheres, majoritariamente, não puderam estar no mercado de trabalho formal, contribuindo para a previdência. Sem uma renda pelo trabalho de cuidados, no momento em que ele está sendo realizado, esse trabalho ainda não está sendo plenamente reconhecido como tal. As mulheres seguem assim entre as opções de estarem presas financeiramente a outra pessoa, ou de terem que trabalhar em jornadas duplas ou triplas, buscando sustento e ao mesmo tempo, realizando o cuidado com baixa qualidade e terceirizando parte dos cuidados para, novamente, mulheres. Outras culturas consideram que desenvolvimento é justamente o processo de auxiliar os demais nas etapas da vida onde não puderem passar sozinhos, é possibilitar o desenvolver da vida. Cuidar é, assim, desenvolver no sentido mais fundamental da palavra, e essa talvez seja a última fronteira do capitalismo, onde o individualismo, a mecanização e a mercantilização são impossíveis, sob pena de engolirem a si próprios. Na valorização do cuidado temos a chance de permanecermos vulneráveis, solidários, conectados e inevitavelmente, humanos.


[i] FOLHA. Argentina reconhece cuidado materno como trabalho para aposentadoria. 23 de julho de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/07/argentina-reconhece-cuidado-materno-como-trabalho-para-aposentadoria-entenda.shtml#:~:text=O%20benef%C3%ADcio%20se%20dirige%20a,regra%20alcance%20155%20mil%20mulheres.

[ii] Martínez-Alier & Muradian, 2015.

[iii] Um esforço de sistematizar e mensurar a Economia do Cuidado pode ser encontrado em Folbre (2006).

[iv] Addati et al (2018).

[v] Ilkkaracan (2016).

[vi] Ilkkaracan et al (2021).


REFERÊNCIAS

ADDATI, L.; CATTANEO, U.; ESQUIVEL, V.; VALARINO, I. International Labour Organization (ILO). Junho de 2018. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/—publ/documents/publication/wcms_633135.pdf.

FOLBRE, N. Measuring Care: gender, empowerment and the care economy. Journal of Human Development. 7 (2), pp. 183 – 189. 2006.

ILKKARACAN, I. The Purple Economy Complementing the Green: towards sustainable and caring economy. Artigo apresentado no Levy Economics Institute and Hewlett Foundation. Workshop on “Gender and Macroeconomics: Current State of Research and Future Directions”, 2016, NY. Disponível em: https://kadinininsanhaklari.org/wp-content/uploads/2019/05/2016.PurpleEconomy.Ilkkaracan.Levy-Hewlett.pdf.

ILKKARACAN, I.; KIM, K; MASTERSON, T.; MEMIS, E.; ZACHARIAS, A. The impact of investing in social care on employment generation, time-income-poverty by gender: A macro-micro policy simulation for Turkey. World Development, nº 144, 2021.

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MARTÍNEZ-ALIER, J. & MURADIAN, R. Handbook of Ecological Economics. Massachussets: Edward Elgar Publishing, 2015.

ISABELA CALLEGARI

Isabela Callegari é mestra em Economia pela Unicamp, graduanda em Direito pela UFRGS e pesquisadora do Instituto Justiça Fiscal.