SSB
22/06/2021

Pesquisadora percebe em suas pesquisas uma mudança de perfil das pessoas que hoje estão em situação de rua, um público que deixa de ser só masculino e passa a ser composto por mulheres, crianças e idoso

Foto: Bruna Costa/Arq. DP Foto

Por: João Vitor Santos | IHU

No Brasil, não há uma amostragem geral sobre as populações em situação de rua e isso é um grande desafio para a concepção de efetivas políticas públicas voltadas a essas pessoas, como bem observa a pesquisadora Juliana Reimberg. Mas, se faltam dados precisos, sobram imagens e relatos desse flagelo urbano. Hoje, até em cidades médias se observam muitas pessoas vivendo pela rua. Nas grandes metrópoles, como São PauloJuliana não percebe só o aumento dessa população como também uma mudança de perfil. “Historicamente a maior parte das pessoas que se encontram nessa situação são homens desacompanhados. Porém, nos últimos anos, é perceptível um crescimento das famíliasmulheres e idosos em situação de rua”, pontua, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Ela ainda observa que são famílias inteiras que passam a não ter um teto e vivem em moradias improvisadas nos espaços públicos. “Considerando principalmente o contexto da pandemia da Covid-19, esse aumento pode ser justificado pelos impactos da forte crise econômica que o país está vivendo”, avalia. E completa: “entre os impactos da crise destacam-se a perda de trabalho e o aumento das ações de despejo, principalmente em razão do inadimplemento de aluguéis, que colocaram muitas famílias nas ruas”.

No entanto, Juliana faz questão de destacar que os motivos das pessoas que têm a rua como única opção ainda são diversos. Mulheres, por exemplo, têm essa como a única saída de uma realidade de abusos e violência doméstica. Isso torna ainda mais desafiador a concepção de políticas públicas, pois a simples construção ou aumento de vagas em albergues não dá mais conta dessa realidade complexa. “Além das poucas vagas de acolhimento para mulheresidosos e principalmente para famílias, noto que as lógicas desse serviço não consideram as especificidades desses perfis”, observa.

Assim, na prática, muitas famílias têm de ser separadas. “O que se nota é que além da separação familiar, o que ocorre nessa dinâmica é que a mulher fica responsável por cuidar das crianças e adolescentes, enquanto o homem deve buscar alguma renda para tirar a família daquela situação. Assim, a própria política de assistência social acaba por reproduzir desigualdades e perpetuar a divisão sexual do trabalho”, destaca.

Por isso, pensar em políticas de atenção a essas pessoas requer muito mais do que cama e comida, embora isso seja fundamental. Para Juliana, essa não deve ser uma responsabilidade apenas de secretarias ou departamentos de assistência social, mas sim de uma ação integrada multissetorial. “É necessário que outras áreas do governo se engajem com a pauta da população em situação de rua, como saúde, empregabilidade, habitação, cultura, direitos humanos, educação. Ademais, também é fundamental destacar que as pessoas em situação de rua são sujeitos ativos que devem participar da construção das políticas que lhe são destinadas”, resume.

Juliana Reimberg é mestranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP e graduanda em Direito na Fundação Getulio Vargas - FGV. Ainda é bacharel em Administração Pública pela FGV e atua como pesquisadora no Centro de Estudos da Metrópole - CEM-USP e no Centro de Política e Economia do Setor Público - Cepesp/FGV.

Confira a entrevista.

Vivemos um aumento da população de rua nas grandes metrópoles? Como isso tem se materializado em suas pesquisas?

Juliana Reimberg – A população em situação de rua está em crescimento no Brasil. Uma estimativa feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea indica que em setembro de 2012 havia 92.515 pessoas nesta situação no Brasil e em março de 2020 essa população era de 221.869. Vale destacar que essa estimativa não considera o contexto da pandemia da Covid-19, a qual impactou economicamente muitas famílias, aumentando esses números

Todavia, destaco que esses dados são estimativas, pois o Brasil não possui um Censo Nacional da População em Situação de Rua, o que traz muitos desafios para as políticas públicas voltadas a esse grupo. A falta de dados sobre quantas pessoas se encontram nessa situação, bem como informações sobre qual é o perfil sociodemográfico dessas pessoas e onde elas estão, faz com que essa população esteja ainda mvaais invisibilizada perante o poder público.

Assim, podemos falar que há um aumento da população em situação de rua, sobretudo nas grandes metrópoles, a partir da vivência dos movimentos sociais, dos pesquisadores e dos próprios servidores públicos que atuam junto à população em situação de rua. Entretanto, é essencial que haja uma contagem nacional e periódica que mensure a situação de rua no país, de modo que tenhamos dados oficiais que comprovem essa percepção. Um Censo Nacional da População em Situação de Rua seria uma forma inclusive de fomentar que esse desafio entre na agenda pública e que a população em situação de rua seja uma prioridade na agenda do governo federal e de governos municipais e estaduais.

Atualmente há um projeto de lei no Senado (PL 4498/2020) para que a população em situação de rua seja incluída na contagem do Censo Demográfico do IBGE. Hoje o censo não contabiliza a população em situação de rua por se tratar de uma pesquisa domiciliar.

Mais famílias, mulheres e idosos na rua

Em relação ao impacto desse aumento na minha pesquisa, noto dois efeitos. Primeiro, por pesquisar sobretudo políticas públicas para mulheres em situação de rua, percebo que o aumento da população em situação de rua é também caracterizado por uma mudança gradual do perfil dessa população. Historicamente a maior parte das pessoas que se encontram nessa situação são homens desacompanhados. Porém, nos últimos anos, é perceptível um crescimento das famíliasmulheres e idosos em situação de rua.

Segundo, noto que algumas cidades estão realizando contagens oficiais da população em situação de rua de forma periódica, de modo a mensurar esse aumento e melhorar a formulação e implementação de políticas públicas para esse grupo. São Paulo, por exemplo, em 2019, aprovou uma lei que institucionaliza o Censo Municipal da População em Situação de Rua a cada quatro anos. A próxima contagem ocorreria em 2023, porém, em razão dos fortes impactos da pandemia, a Prefeitura realizará neste ano um novo censo municipal. Como pesquisadora, ter esses dados atualizados contribui muito para as minhas análises e o desenvolvimento da minha pesquisa.

Como compreender esse aumento da população em situação de rua?

Juliana Reimberg – Apesar da ausência de dados nacionais, é possível apontar algumas questões que podem explicar o aumento da população em situação de rua. Considerando principalmente o contexto da pandemia da Covid-19, esse aumento pode ser justificado pelos impactos da forte crise econômica que o país está vivendo. Entre os impactos da crise destacam-se a perda de trabalho e o aumento das ações de despejo, principalmente em razão do inadimplemento de aluguéis, que colocaram muitas famílias nas ruas.

Mas há outras questões que historicamente explicam a ida de pessoas para as ruas. Segundo o Censo Municipal da População em Situação de Rua de São Paulo de 2019, 40% das pessoas entrevistadas afirmaram que se encontravam em situação de rua em razão de conflitos familiares. Em pesquisa que realizei com mulheres em situação de rua, muitas entrevistadas relataram que foram para os centros de acolhida voltados à população em situação de rua após vivenciarem episódios de violência doméstica – violência que infelizmente também aumentou no contexto da pandemia.

A senhora já referiu uma mudança no perfil das pessoas que estão nas ruas hoje. Poderia nos detalhar um pouco mais?

Juliana Reimberg – Nos últimos anos, é perceptível um aumento das mulheresidosos e famílias em situação de rua, o que traz grandes impactos para as políticas públicas direcionadas a essa população. A população em situação de rua é um grupo complexo e multifacetado, ainda que predominantemente composta por homens desacompanhados. Assim, é fundamental olhar para esses novos perfis que compõem a população em situação de rua, pois são perfis que, por mais que sejam minoritários, são muitas vezes pessoas que se encontram em situação de maior vulnerabilidade.

No caso das mulheres, por exemplo, sua ida para as ruas está associada ao fato de viverem processos de violência doméstica. No caso dos idosos, notamos frequentemente situações de fragilidade e rompimento dos vínculos familiares.

Esta mudança faz com que seja necessário repensar as políticas públicas voltadas à população em situação de rua. No Brasil, a principal resposta do poder público a esse desafio social é a oferta de vagas em centros de acolhida. Porém, percebo que essa política, muitas vezes, não considera os novos perfis que compõem a população em situação de rua. Além das poucas vagas de acolhimento para mulheres, idosos e principalmente para famílias, noto que as lógicas desse serviço não consideram as especificidades desses perfis.

Divisão familiar

Por exemplo, quando famílias se encontram em situação de rua, dificilmente elas conseguirão encontrar uma vaga de acolhimento familiar. Assim, a família muitas vezes terá que se dividir. Se a família tiver um homem maior de idade (o pai, por exemplo), ele irá para um centro de acolhida masculino, o qual não permite a entrada de crianças e adolescentes. Já a mulher (a mãe, por exemplo) irá para um centro de acolhida feminino junto com as crianças e adolescentes. Consequentemente, o que se nota é que além da separação familiar, o que ocorre nessa dinâmica é que a mulher fica responsável por cuidar das crianças e adolescentes, enquanto o homem deve buscar alguma renda para tirar a família daquela situação. Assim, a própria política de assistência social acaba por reproduzir desigualdades e perpetuar a divisão sexual do trabalho.

Qual a centralidade dos vínculos familiares nesse contexto de aumento da pobreza, fome e elevação da população em situação de rua?

Juliana Reimberg – A população em situação de rua é definida, na Política Nacional em Situação de Rua (Decreto nº 7.053/2009), como um grupo heterogêneo, que partilha da pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e inexistência de moradia convencional regular, utilizando os logradouros públicos e serviços de acolhimento. Assim, os vínculos familiares são centrais para compreender o fenômeno da situação de rua.

Diante de situações de vulnerabilidade, comumente a família é um dos primeiros núcleos de apoio que as pessoas possuem. Assim, é comum que as pessoas peçam auxílio a uma rede de apoio de familiares e pessoas próximas antes de buscarem ajuda de outros atores. Nesse sentido, como ilustra o Censo Municipal da População em Situação de Rua de São Paulo e a própria definição de população em situação de rua, conflitos familiares e o rompimento desses vínculos são um dos fatores que impulsionam a ida de pessoas para as ruas e para os centros de acolhida, as quais se encontram em situações que precisam buscar apoio de outros atores, como entidades sociais e o Estado.

Nesse contexto, é pertinente lembrar que a atuação da Assistência Social é caracterizada por, em diversas situações, promover a reconstrução dos vínculos familiares. Recentemente, em outubro de 2020, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos publicou uma resolução com diretrizes para a proteção dessas pessoas, reforçando a importância de que o trabalho social com a população em situação de rua atue no fortalecimento e reconstrução de tais vínculos.

Um aspecto interessante de comentar nesse ponto é que, ao mesmo tempo que a situação de rua é caracterizada por essa fragilidade dos vínculos familiares, as pesquisas que realizei mostram que redes de proteção informal entre as pessoas que se encontram em situação de rua são criadas. No caso do centro de acolhida para mulheres em situação de rua, onde realizei uma pesquisa em 2019, era comum ver como as acolhidas naquele local se ajudavam nas tarefas do cotidiano. Por exemplo, elas se acompanhavam em consultas médicas, cuidavam dos filhos umas das outras e faziam um revezamento para realizar tarefas como lavar as roupas.



Que relatos a senhora tem ouvido das pessoas nas ruas?

Juliana Reimberg – Acredito que dois relatos que colhi, em entrevistas realizadas em 2019, ilustram grande parte dos pontos que discuti nas respostas anteriores, mostrando tanto a diversidade que caracteriza a situação de rua, como também os limites dos centros de acolhida.

Rute (56) estava há quatro meses vivendo em um centro de acolhida feminino na cidade de São Paulo. Foi para esse serviço depois de ser violentada pelo marido. Ela relatou que, enquanto dormia, seu marido ateou fogo na cama e na sua camisola, ferindo-a gravemente. Rapidamente ela conseguiu tirar as roupas e fugir de casa direto para o hospital municipal de Mairiporã (cidade em que morava), onde recebeu os primeiros socorros e ficou internada por dois dias. A irmã a ajudou no hospital, como também com os procedimentos policiais. Após os atendimentos iniciais, os médicos a transferiram para um hospital público no Tatuapé, que é especializado no atendimento a queimados. Após seis meses internada, o médico sugeriu que ela fosse para um centro de acolhida para mulheres em situação de rua que estava próximo ao hospital, pois teria que, durante um ano, retornar semanalmente ao hospital para fazer o tratamento das queimaduras e, por este motivo, ela estava no serviço de acolhimento.

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Virgília (21) é mãe de uma menina (2) e um menino (1). Está em um centro de acolhida para mulheres em situação de rua em São Paulo junto com as crianças e o seu marido está em um centro de acolhida masculino próximo ao local. Conta que, antes de ir para o centro de acolhida, trabalhava informalmente com serviços de limpeza e cuidados de crianças. Já seu marido era pedreiro, mas foi demitido recentemente. A família vivia em uma ocupação de um prédio particular que teve a posse retomada pelo proprietário. Ao se encontrarem sem moradia foram diretamente ao Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) solicitar encaminhamento a um serviço socioassistencial, no entanto, não conseguiram uma vaga para acolher toda a família no mesmo serviço. Ela conta que estão há um mês nessa situação e que tem sido extremamente difícil viver longe do marido, tanto para ela, quanto para as crianças. Apesar de existirem alguns locais de convivência comum no complexo de centros de acolhida em que eles se encontram, os homens podem ficar nesse equipamento somente das 16h às 8h do dia seguinte, ou seja, o período noturno. Enquanto está fora do centro de acolhida, o marido faz ocasionalmente alguns “bicos”, porém o dinheiro arrecadado não é suficiente para cobrir as despesas da família. As crianças, até o momento, não receberam um encaminhamento para as escolas da região, ficando, portanto, integralmente sob os cuidados de Virgília. Ela disse que, assim que sair a vaga das crianças nas escolas, ela gostaria de buscar um emprego, especialmente como auxiliar de limpeza.

Quais são os limites das atuais políticas públicas voltadas para as pessoas em situação de rua?

Juliana Reimberg – Dentre os principais limites das atuais políticas públicas para população em situação de rua, destaco o fato de elas serem pensadas, muitas vezes, dentro da lógica de que “um tamanho serve para todos”, quando na verdade esse grupo populacional é extremamente diverso. As políticas públicas para população em situação de rua comumente desconsideram os vários perfis e, consequentemente, as diversas necessidades dessa população. Historicamente a população em situação de rua foi assistida pelo trabalho da Assistência Social e hoje ainda é possível notar uma forte prevalência da política socioassistencial na atenção oferecida a esse público, como com a oferta dos serviços de acolhimento, dos centros de convivência e dos Centros Pop.

Apesar dessas políticas públicas serem muito importantes para reduzir a vulnerabilidade de se encontrar em situação de rua, esse é um problema complexo que exige respostas intersecretariais para ser superado. Assim, é necessário que outras áreas do governo se engajem com a pauta da população em situação de rua, como saúde, empregabilidade, habitação, cultura, direitos humanos, educação. Ademais, também é fundamental destacar que as pessoas em situação de rua são sujeitos ativos que devem participar da construção das políticas que lhe são destinadas.

Política Nacional para População de Rua, em 2009, recomendou a criação de Comitês Intersetoriais, formados por representantes da sociedade civil e de diferentes áreas do governo, para discutir as políticas públicas para população em situação de rua. Hoje algumas cidades e estados possuem esses espaços de diálogo, monitoramento e criação das políticas destinadas a essa população, como também há um comitê no nível federal. Acredito que a criação e fortalecimento desses espaços que promovam a transversalidade do debate sobre as políticas públicas é positivo para superar o desafio mencionado, porém ainda é fundamental assegurar que essa interação entre diversos atores também esteja presente no momento da implementação de políticas públicas.

Quando se fala em atendimento à população de rua, o senso comum sempre aponta para o trabalho de albergues e recolhimento dessas pessoas para instituições desse tipo. O que esse tipo de visão revela e o quão superada é essa perspectiva?

Juliana Reimberg – É preciso destacar que essa visão reflete o histórico das políticas para população em situação de rua, uma vez que a oferta de vagas em centros de acolhida foi – e ainda é – a principal política pública adotada para superar essa situação, como já mencionei em outras perguntas. Assim, é compreensível que os centros de acolhida sejam a principal alternativa que venha em mente quando falamos em população em situação de rua.

Porém, considero que é preciso superarmos essa visão, discutindo também questões sobre o direito à cidade e o uso do espaço urbano pelas pessoas. Por que não pensarmos também em políticas públicas para melhorarmos as infraestruturas urbanas, reduzindo as vulnerabilidades daqueles que estão nas ruas?

Na cidade de São Paulo, o último Censo Municipal (2019) apontou que na época cerca de metade da população em situação de rua não estava acolhida nos serviços municipais. Assim, para além de aumentar as vagas em serviços de acolhimento, é essencial melhorar a infraestrutura das cidades para que as pessoas que não estão nos centros de acolhida – seja pela falta de vagas, seja por não se adaptarem a esse tipo de serviço – tenham uma vida mais digna e menos vulnerável, ainda que se encontrem nas ruas. Diversos arquitetos e urbanistas já discutem sobre como muitas vezes os espaços urbanos são pensados de uma forma pouco inclusiva. Ilustra essa situação o caso que repercutiu, no início deste ano, das pedras instaladas embaixo de um viaduto na Zona Leste para impedir que pessoas em situação de rua se abrigassem naquele local.

Cidade inclusiva

E começar a pensar na infraestrutura urbana para acolher a população em situação de rua pode iniciar com ações simples como instalar mais bebedouros e banheiros públicos na cidade. Um dado que me chamou muita atenção foi que no início da pandemia (março/2020) a prefeitura de São Paulo identificou apenas onze pontos públicos de água potável na cidade. Essa escassez de locais para acesso à água impactou diretamente a população em situação de rua, que com o fechamento dos parques e do comércio, precisava de acesso à água para sobreviver e para manter hábitos de higiene. A recomendação no início da pandemia era “fiquem em casa e lavem as mãos”, mas essa população não só não tinha o acesso à moradia, como também não tinha o acesso à água.

Desse modo, entendo que as políticas para a população em situação de rua precisam discutir também o direito à cidade, considerando principalmente que melhorar a infraestrutura do espaço urbano beneficia não somente os cidadãos que se encontram em situação de rua, mas também toda coletividade que utiliza esses locais.

Que tipo de intervenção deve ser feito para mudar a realidade dessas pessoas que estão na rua?

Juliana Reimberg – Hoje o modelo de centros de acolhida é muito criticado por não fornecer uma saída digna das ruas. Além dos pontos que já mencionei sobre os centros de acolhida, de muitas vezes não atenderem às necessidades de mulheres e famílias, há também outras críticas importantes ao modelo tradicional de serviço de acolhimento (modelo integrado). Segundo tal modelo, primeiro a pessoa ingressa em um centro de acolhida para depois conseguir encaminhamento a um serviço do tipo autonomia em foco ou do tipo repúblicas e depois ter direito a um programa habitacional.

Os centros de acolhida (popularmente chamados de “albergues”) são serviços grandes que comportam, muitas vezes, entre 50 e 100 pessoas na capital paulista. Nesses locais, há diversos beliches, uns próximos aos outros, sendo comum que todos estejam no mesmo ambiente, como um galpão. As refeições são preparadas pela OSC [organizações da sociedade civil] que gerencia o serviço e são servidas em um modelo “bandejão”, onde as pessoas apontam que às vezes não podem nem repetir o prato. Os banheiros, as lavanderias e a sala de TV são compartilhados e cada centro de acolhida possui regras sobre o revezamento no uso desses espaços.

Já os serviços do tipo República e Autonomia em Foco atendem menos pessoas. São locais em que os quartos são menores, sendo compartilhados por até quatro pessoas nas repúblicas e individuais no Autonomia em Foco. Há uma cozinha comunitária que deve ser compartilhada pelas pessoas que estão nesses serviços, em um modelo em que cada pessoa é responsável por preparar a sua própria comida. Esses serviços são mais bem avaliados pelos usuários, sobretudo pela maior autonomia e qualidade oferecida nesse acolhimento.

Todavia, o modelo integrado apresenta grandes limitações. Primeiro, a vazão na rede socioassistencial é muito pequena. Em outras palavras, há poucas vagas em Repúblicas e Autonomia em Foco e muitas vagas em centros de acolhida, assim, são exceções que conseguem o encaminhamento para esses serviços, sendo que a maioria das pessoas são atendidas pela rede de acolhimento institucional nos primeiros estágios do modelo integrado (nos centros de acolhida). Em São Paulo, por exemplo, dados da Planilha de Convênios e Parcerias da SMADS de 2021 mostram que em maio havia cerca de 535 vagas de acolhimento nesses serviços de acolhimento mais autônomos, enquanto há mais de 10 mil pessoas em centros de acolhida (“albergues”) na cidade de São Paulo.

O mais interessante é que um estudo feito pela pesquisadora Julia Lima mostra que os centros de acolhida custam em média 965 reais mensais por pessoa, enquanto o serviço de república custa cerca de 352 reais mensais por pessoa. Assim, em termos de orçamento, seria vantajoso para os cofres públicos que se investisse em mais repúblicas.

Uma segunda limitação do modelo integrado é que os centros de acolhida não são a melhor alternativa aos diversos perfis que se encontram em situação de rua. Cada pessoa possui uma autonomia específica e o modelo proposto no centro de acolhida pode ser muitas vezes prejudicial ao desenvolvimento dos indivíduos mais autônomos. Retomando, por exemplo, o caso de Rute, que foi vítima de violência doméstica. Ela tinha um lar, onde era responsável por fazer as atividades domésticas e onde tinha uma rotina própria de vida. Quando ela foi para o centro de acolhida, passou a seguir determinadas regras que lhe foram impostas e até uma rotina que lhe foi imposta, com horários para dormir, acordar, comer, tomar banho, lavar roupas – além de não poder mais escolher o que irá comer naquele dia, nem qual canal de TV irá assistir. Assim, há todo um processo de descaracterização da individualidade dessas pessoas que pode ser prejudicial no seu processo de saída das ruas.

Moradia Primeiro

Diante dessa crítica, a principal intervenção proposta para mudar essa realidade, que está sendo adotada internacionalmente, é o modelo de “Moradia Primeiro”. Segundo esse modelo, não se espera mais que a pessoa passe por todas essas etapas (centros de acolhida, república e autonomia em foco) para ter acesso à moradia. Nesse novo modelo, inverte-se a lógica oferecendo diretamente um acesso à moradia, junto com a atuação em outras áreas de políticas públicas.

O modelo já foi testado em outros países – PortugalHolandaBélgica e Dinamarca, por exemplo – e mostrou resultados positivos na melhora da qualidade de vida das pessoas em situação de rua, no processo de saída das ruas, na redução do uso de drogas, além de apresentar um melhor custo-benefício em relação ao modelo tradicional. No Brasil, alguns apontam que o programa “De Braços Abertos” foi um piloto do que seria um programa de moradia primeiro no país e, recentemente, a Prefeitura de Recife lançou o programa “Recife Acolhe”, que também é inspirado nesse modelo inovador.