SSB
19/01/2021
Imagem: EFE/EPA/RICCARDO ANTIMIANI

“Por seus gestospalavras e ações, o papa Francisco destacou-se como um dos atores que mais impactou o mundo no decorrer da pandemia, além de revelar-se como porta-voz da compaixão, da esperança e da solidariedade de uma Igreja servidora da humanidade em tempos de crise, incertezas, sofrimento e morte. Circunscritas, no início, ao período em que a Covid-19 mais afetou a Europa, suas iniciativas permanecem cheias de significado, como um apelo a tornar este tempo uma ocasião favorável a uma verdadeira conversão e uma oportunidade real para uma humanidade e um mundo novos”, escreve Dom José Tolentino de MendonçaMaria Clara Bingemer e Geraldo De Mori, em artigo publicado no Cadernos Teologia Pública, Nº 147, do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Dom José Tolentino de Mendonça. Nasceu em 1965. Estudou Teologia e Ciências Bíblicas. Doutorou-se com uma tese em que propõe o recurso à análise narrativa para interpretar a figura de Jesus no Evangelho de São Lucas. Foi professor, diretor do Centro de investigação em Teologia e Estudos de Religião e Vice-Reitor da Universidade Católica Portuguesa. Em 2018, o Papa Francisco convidou-o para pregar os exercícios espirituais à cúria romana. Nesse mesmo ano nomeou-o bispo e no ano seguinte cardeal. É atualmente responsável pelos Arquivos e Biblioteca Apostólica. Tem publicado uma obra significativa no campo do ensaio e da poesia, que nos últimos anos conheceram edição no Brasil e traduções em Espanha, França, Itália, Alemanha, Estados Unidos, entre outros. Dos seus títulos se destacam: O elogio da sede (Paulinas: 2019); A leitura infinita. A Bíblia e a sua interpretação (Paulinas: 2018); Pai-Nosso que estais na terra (Paulinas: 2016).

Maria Clara Lucchetti Bingemer. Graduação em Comunicação Social (1975), graduação e mestrado em Teologia pela PUC-Rio, doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1989). Professora titular no Departamento de Teologia da PUC-Rio. Durante dez anos dirigiu o Centro Loyola de Fé e Cultura da mesma Universidade. Durante quatro anos foi avaliadora de programas de pós-graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Durante seis anos foi decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: Deus, alteridade, mulher, violência e espiritualidade. Atualmente tem pesquisado o pensamento e os escritos de místicos contemporâneos e a interface entre Teologia e Literatura.

Geraldo Luiz De Mori. Bacharel em Filosofia (1986) e Teologia (1992) pelo Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus - CES - (Belo Horizonte, MG, atual Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE -); licenciado em Filosofia pela PUC Minas (1990); mestre (1996) e doutor (2002) em Teologia pelo Centre Sèvres - Facultés Jésuites de Paris (França); pós-doutorado (2011/2012) no Institut Catholique de Paris. Professor de teologia sistemática no Departamento de Teologia da FAJE. Líder do Grupo de Pesquisa Interfaces da antropologia na teologia contemporânea. Membro do Conselho Editorial das Revistas Concilium, Teología y Vida, do Grupo de Santiago (que estuda teologia prática). Reitor da FAJE desde março de 2018.

Eis o artigo.

Um gesto

Sem sombra de dúvidas o gesto mais impactante realizado pelo papa Francisco, no auge da pandemia na Itália, foi o do dia 27 de março de 2020. Sozinho, diante da Praça São Pedro vazia, em uma tarde chuvosa e fria, diante do crucifixo da Igreja de São Marcelo, considerado milagroso por ter sido levado em procissão em Roma na peste de 1522, e do ícone da Virgem Maria, Salus Populi Romani, o Papa realizou uma celebração, na qual proferiu uma homilia, seguida da adoração do Santíssimo e da bênção urbi et orbi.

O primeiro elemento que chama a atenção nesse gesto é o próprio cenário em que se deu: a praça. Em geral, ela é o lugar de encontros, intercâmbios e aglomerações, muitos dos quais resumem boa parte da vida social, política, cultural e religiosa de uma comunidade e de um povo. Em particular, no caso da Igreja, a Praça São Pedro é o símbolo de sua catolicidade. Dela, o Bispo de Roma abençoa a cidade (urbi) e o conjunto das igrejas espalhadas pelo mundo (orbi). A praça vazia recorda um dos efeitos mais drásticos da pandemia: o distanciamento social, que reduziu os contatos nos locais de trabalho e de circulação das pessoas, obrigando-as ao isolamento, dando um novo lugar e sentido à vida nas casas. O mesmo se deu com relação aos templos, que ficaram vazios, levando os fiéis e as lideranças eclesiais a redescobrirem o significado da Igreja doméstica.

Na praça vazia, em que o silêncio era interrompido apenas pelo som dos sinos e das sirenes, uma chuva fina caía incessantemente. Caminhando sozinho e meio encurvado, enquanto subia com certa dificuldade os degraus do adro, Francisco se fez o porta-voz dos sofrimentos, angústias e incertezas que a pandemia provocou na humanidade inteira. Sua figura, naquela tarde chuvosa e sombria, era também a do pastor de uma Igreja que, como ele, acredita que o Crucificado carrega as dores do mundo, dando aos que nele creem força e esperança para atravessarem a tormenta que afeta todo o planeta.

"Caminhando sozinho e meio encurvado, enquanto subia com certa dificuldade os degraus do adro, Francisco se fez o porta-voz dos sofrimentos, angústias e incertezas que a pandemia provocou na humanidade."

A praça, o vazio e o silêncio, a chuva e o frio, o Crucifixo e o Ícone, que compõem o cenário no qual o Pontífice rezou pelo fim da pandemia, se articulam com o que nele é enunciado: a proclamação do Evangelho de Marcos (4, 35-41), a homilia do Papa, sua oração diante do Ícone e do Crucifixo, a exposição e adoração do Santíssimo, invocações e a bênção urbi et orbi. Os elementos que compõem o gesto daquela tarde, apesar de enraizados no imaginário católico, trazem em si algo que é comum à humanidade inteira. De fato, o vazio e o silêncio, a chuva e o frio daquela tarde, naquela praça, evocam o mundo em tempos de Covid-19; o Crucifixo recorda os sofrimentos das vítimas e os efeitos da pandemia, sobretudo na vida dos mais vulneráveis; o Ícone é o símbolo dos que esperam contra toda esperança, e de forma ativa e criativa, através do serviço e da solidariedade.

Palavras

Além desse gesto icônico, que indica qual deve ser a atitude da Igreja em tempos de pandemia, o papa Francisco, ainda na homilia daquela tarde de 27 de março, mas igualmente em outras ocasiões, propôs algumas pistas de interpretação desse tempo, indicando ainda como nele discernir os apelos de Deus para a Igreja e para a humanidade.

É digna de nota, nas intervenções do Papa no auge da crise da Covid-19 na Europa, e, mais recentemente, na encíclica Fratelli Tutti (FT), a palavra que ele escolheu para interpretar esse tempo pandêmico. Em geral, os chefes de Estado privilegiaram a semântica bélica para falar da pandemia, recorrendo a termos como “guerra” ou “luta” contra um “inimigo invisível” a ser “combatido”, “vencido”, “eliminado”. Neste tipo de leitura, a humanidade aparece como vítima que deve reagir a um ataque. Na homilia de 27/03/2020, feita à luz de Mc 4,35-41, citada na FT, 32, Francisco recorre à palavra “tempestade” ou “tormenta” para entender a situação provocada pelo novo coronavírus. Segundo ele, “densas nuvens cobriram nossas praças, ruas e cidades”, tomando conta de nossas “vidas e enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e de um vazio desolador que paralisa tudo”. Estamos “assustados e perdidos”. Como os “discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tormenta inesperada e furiosa”, que nos fez, porém, dar-nos conta de que “estamos no mesmo barco, todos frágeis e desorientados”, embora, ao mesmo tempo, há que se afirmar que todos somos “importantes e necessários”, “chamados a remar juntos” (FRANCISCO, 2020a). A escolha da simbólica da tempestade e do barco, no qual se encontra toda a humanidade, é sagaz, pois, por um lado, recolhe bem o sentido primeiro do termo pandemia: pan (todos) + demos (povo), e por outro, mais do que tornar a humanidade apenas vítima, revela-lhe sua extrema vulnerabilidade.

A pandemia é ainda lugar de desmascaramento das “falsas e supérfluas seguranças” que definiam agendas, “projetos, rotinas e prioridades”. Ela mostra também como tinha ficado “adormecido e abandonado o que alimenta, sustenta e dá força” à existência pessoal e comunitária. Através dela, são desveladas as tentativas de esconder e “esquecer o que nutriu a alma” dos povos, e os intentos de anestesiá-la com “aparentes rotinas salvadoras”, que, porém, são incapazes de apelar às raízes e evocar a memória que capacita para enfrentar a adversidade. Com ela caiu a maquiagem que disfarçava os estereótipos de um ego pretensioso, e ficou evidente a “bendita” pertença comum que torna todos irmãos e irmãs. Embora a humanidade tenha avançado em muitos aspectos, sentindo-se “forte e capaz de tudo”, a cobiça levou-a a ser absorvida pelo material e transtornada pela pressa, não despertando diante das “guerras e injustiças”, e tornando-se surda “ao grito dos pobres” e do “planeta gravemente enfermo” (FRANCISCO, 2020a).

A provação vivida pela humanidade na pandemia é vista ainda como “um momento de eleição”. Mais que ao juízo divino, diz o Papa em sua homilia de 27/03/2020, trata-se de um momento para nosso juízo, ou seja, “para eleger entre o que conta verdadeiramente e o que passa, para separar o que é necessário do que não é”. Essa eleição é na verdade uma oportunidade de conversão e leva o ser humano a “restabelecer o rumo da vida” para Deus e para o próximo. É interessante observar que, logo após essa afirmação, o Pontífice recorda os “companheiros de viagem exemplares” que, “diante do medo”, deram a própria vida. Ele vê neles/as a força “operante do Espírito derramada e plasmada em valentes e generosas entregas”. O mesmo Espírito, diz ele, “resgata, valoriza e mostra como nossas vidas estão tecidas e sustentadas por pessoas comuns”, que não estão na grande mídia ou nas “passarelas” de sucesso, mas que hoje “estão escrevendo os acontecimentos decisivos de nossa história”. Esse grupo “anônimo”, formado por pessoas que atuam no mundo da saúde, do comércio, dos transportes, das forças de segurança, além dos voluntários/as, religiosos/as, padres, professores/as, pais, mães e avós, e em tantos outros, compreendeu que “ninguém se salva sozinho”, e por isso busca de tantas maneiras “infundir esperança” e semear “corresponsabilidade” (FRANCISCO, 2020a).

"A saúde do ser humano é indissociável da saúde do meio ambiente. O antropocentrismo, que determinou a história moderna da humanidade, deve ser corrigido."

Ao lembrar que a vida é tecida e sustentada por pessoas comuns, que escrevem as páginas decisivas da história presente, Francisco articula, numa visão sistêmica, sua reflexão sobre a pandemia com o que escreveu na Laudato si’ (LS) sobre o cuidado da casa comum. Na verdade, a saúde do ser humano é indissociável da saúde do meio ambiente. A pandemia recorda que o futuro já chegou e que a LS é o mapa para o presente. O ser humano e o mundo têm um mesmo destino. Tudo está interligado, tudo é interdependente. O antropocentrismo, que determinou a história moderna da humanidade, deve ser corrigido. Na FT o Papa é ainda mais incisivo. Ele recorda que, apesar de estarmos “superconectados”, deixamo-nos levar pela fragmentação que dificultou soluções que implicassem a todos (FT, 7). Por um momento tivemos a “consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos” (FT, 32). O golpe duro da pandemia, continua o Papa, “obrigou, por força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que no benefício de alguns”. Além do mais, a “tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e, sobretudo, o sentido da nossa existência” (FT, 33).

Como nos profetas bíblicos, além de oferecer uma leitura lúcida da pandemia, chamando à conversão, as palavras de Francisco são também de consolação e esperança. Na mensagem urbi et orbi da páscoa de 2020, ele diz: “é outro contágio, que se transmite de coração a coração”, porque todos esperam esta Boa Notícia. “É o contágio da esperança”. A páscoa não oferece uma fórmula mágica para a dor do mundo, que passa por cima do sofrimento e da morte. Ela abre um “caminho no abismo, transformando o mal em bem, sinal distintivo do amor de Deus”. O Ressuscitado é o Crucificado e traz em “seu corpo glorioso as chagas indeléveis, feridas que se convertem em luz da esperança”. É a Ele que dirigimos nosso olhar “para que cure as feridas da humanidade desolada”. O Pontífice recorda então todos os que foram afetados pelo contágio: os doentes, os que morreram, as famílias que choram seus mortos e, em alguns casos, “nem puderam dar-lhes o último adeus”. Ele afirma que a Covid-19 está não só privando dos afetos, mas também da possibilidade de recorrer ao consolo dos sacramentos. O Papa anima ainda os responsáveis políticos frente às incertezas do futuro, pedindo-lhes que trabalhem “ativamente em favor do bem comum dos cidadãos”. Recorda que este não é o tempo da indiferença, “porque o mundo todo está sofrendo e tem que estar unido”. Lança um olhar particular para os mais pobres e vulneráveis e lembra que não é tempo de fechamento. Tampouco há que seguir fabricando armas e alimentando guerras (FRANCISCO, 2020b).

Ações

Os gestos e palavras do papa Francisco durante a pandemia são voltados a um agir que se desdobra em diversas iniciativas. Uma delas, nem sempre tida como tal, é muito presente na cerimônia do dia 27 de março de 2020: a oração. Ela teve início com uma prece a Deus, “onipotente e misericordioso”, pedindo-lhe que olhasse para a “dolorosa condição” da humanidade, confortando seus filhos/as e abrindo seus corações à esperança e a experimentar sua presença de Pai. Numa das invocações da homilia, inspirada pelo versículo “Por que tendes medo? Ainda não tendes ?” (Mc 4, 40), o Papa se faz porta-voz dos que se encontram no barco em meio à tempestade. Ele reconhece o amor de Deus pelo mundo, os avanços da humanidade, mas também seus tropeços, sua surdez diante dos apelos divinos, da dor da guerra, das injustiças e do planeta enfermo. Ele pede a Deus salvação e se faz ouvinte do chamado divino à fé, uma fé que é um voltar-se para Deus e nele confiar, discernindo em meio à crise uma escolha entre o que conta e o que não conta.

Além de falar, a oração daquela tarde também foi feita de silêncio: breves, diante do Ícone da Virgem e do Crucifixo, longo, diante do Santíssimo exposto. Os dois primeiros momentos foram acompanhados pelo canto de antífonas e o terceiro, após um canto e o silêncio, deu lugar a outras invocações: uma litania de adoração, confissão de fé, petições, invocação do dom do Espírito. Seguiu-se então um canto (Tantum ergo sacramentum), e a conclusão do ato com a indulgência plenária e a bênção urbi et orbi.
Parece contraditório identificar a oração com a ação, pois, dirigida a Deus, ela espera dele uma intervenção, que, no imaginário cristão, depende inteiramente dele. De fato, o silêncio e a súplica, constitutivos da maior parte das orações, dão o protagonismo a Deus e não ao ser humano. Contudo, ainda no texto da homilia da Praça São Pedro, o Papa faz uma afirmação elucidativa. “A oração e o serviço silencioso, diz ele, são nossas armas vencedoras” (FRANCISCO, 2020a). Não só porque na oração cristã acontece um diálogo de liberdades, que chama a uma fé que opera pela caridade, mas também porque ao voltar-se para Deus, o fiel encontra nele o modelo para um agir que é serviço. Como Deus é misericórdia e compaixão, também ele deve ser movido por elas, encarnando-as no mundo e tornando-se, através de seu agir, expressão da ação salvífica divina no mundo.

Na carta de 12 de abril aos movimentos populares, o Papa aprofunda o lugar da solidariedade e das muitas formas de ação, não só dos cristãos, a serem desenvolvidas durante e depois da pandemia. Recordando a metáfora bélica, ele diz que os movimentos populares são um “verdadeiro exército invisível que luta nas mais perigosas trincheiras”, tendo como principais “armas” a “solidariedade, a esperança e o sentido da comunidade”. Tais movimentos são também “verdadeiros poetas sociais”, pois, a partir das periferias, criam “soluções dignas para os problemas mais urgentes dos excluídos”. Mesmo sendo pouco reconhecidos, tidos como invisíveis ou suspeitos pelo sistema, eles trabalham por suas “famílias, seus bairros, pelo bem comum”. O Papa valoriza nesses movimentos as mulheres, os camponeses e os agricultores familiares. Segundo ele, o modelo tecnocrático não oferece soluções neste tempo de pandemia. São as “pessoas, as comunidades e os povos que devem estar no centro, para curar, cuidar, compartilhar”. Dentre os grupos mais ativos, ele valoriza os do trabalho informal, convidando-os para pensar o “depois”, pois eles possuem “a cultura, a metodologia, mas, principalmente, a sabedoria que se amassa com a levedura da dor do outro como própria”. Eles podem ajudar a pensar um “projeto de desenvolvimento integral, centrado no protagonismo dos Povos em toda sua diversidade e o acesso universal aos três T’s, por eles defendidos: “terra, teto e trabalho”. O Pontífice deseja que a pandemia possa sacudir as “consciências adormecidas” e suscitar “uma conversão humanista e ecológica que termine com a idolatria do dinheiro e ponha a dignidade e a vida no centro”, regenerando assim a civilização (FRANCISCO, 2020c).

"Como Deus é misericórdia e compaixão, também ele deve ser movido por elas, encarnando-as no mundo e tornando-se, através de seu agir, expressão da ação salvífica divina no mundo."

Em outros textos da mesma época, o Papa Francisco recolhe os ensinamentos do agir durante a pandemia e seus desdobramentos. Ao evocar as mulheres que vão ao sepulcro ungir o corpo de Jesus, ele vê nelas a “capacidade de colocar-se em movimento e não se deixar paralisar pelo que estava acontecendo”. Na ação dos que cuidaram dos doentes e asseguraram os serviços essenciais durante a pandemia ele vê também a “unção” que “cura, acalma e dá alma à situação”. Nossas “unções e entregas”, diz ele, “não são nem serão em vão”. O padecer com os que padecem nesse tempo torna possível a escuta da novidade da ressurreição. O Espírito, que age em nós e no mundo, “abre horizontes, desperta a criatividade” e move à fraternidade e ao estar presente à dor do outro. Por isso, este tempo é de discernimento. É um tempo favorável, propício a “uma nova imaginação do possível”, mostrando que é “preciso unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral”. Só se vence a emergência da Covid-19 com os “anticorpos da justiça, da caridade e da solidariedade” (FRANCISCO, 2020d).

Na homilia do domingo da misericórdia (19/04/2020), o Papa lembra que outro aprendizado da pandemia é a consciência de “que todos somos frágeis, iguais e valiosos”. Por isso, é “tempo de eliminar as desigualdades, de reparar a injustiça que contamina já na raiz a saúde de toda a humanidade”. A prova pela qual passa a humanidade é uma oportunidade “para preparar o amanhã para todos, sem descartar ninguém” (FRANCISCO, 2020e). Na Catequese do dia 22 de abril, por ocasião do 50º Dia da Terra, ele volta a insistir que a pandemia ensina que “somente juntos e encarregando-nos dos mais frágeis podemos vencer os desafios globais”. Dentre esses desafios, encontra-se o do cuidado do meio ambiente que nos sustenta. “Falhamos, custodiando a terra, nossa casa-jardim, e custodiando nossos irmãos”, diz ao Papa. Por isso, é preciso “retomar uma relação harmoniosa com a terra e com o resto da humanidade”. A harmonia é obra do Espírito. Para redescobri-la é necessário um novo modo de olhar nossa casa comum. Isso é possível se despertamos “o sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nós”. Os povos originários e sua sabedoria do bem viver podem nos ensinar isso. Todos somos chamados a uma “conversão ecológica, que se expressa em ações concretas”, dentre as quais as que estão previstas para os encontros da COP15, sobre a biodiversidade, em Kunming (China) e da COP26, sobre a mudança climática, em Glasgow (Reino Unido). Em nível nacional e local é também necessário propor ações que, num movimento social “a partir de baixo”, traduza em ações concretas uma nova visão (FRANCISCO, 2020f).

"Todos somos chamados a uma conversão ecológica, que se expressa em ações concretas."

Em sua Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social, o papa Francisco retoma e aprofunda muitas das ações entrevistas em suas intervenções durante o tempo da pandemia. Ao agir de um indivíduo pensado como “mônada” (FT, 11), tão próprio da modernidade ocidental, ele contrapõe o de um sujeito visto em suas distintas relações: com o mundo, com os demais, formando um “nós”, com Deus. Ele corrige também a primazia dada à liberdade e à igualdade a partir da Revolução Francesa, convidando a humanidade a redescobrir a fraternidade, vista como dom e tarefa, que nos coloca a todos/as no mesmo barco. Só se atravessa o mar revolto da crise atual se se incluem todos/as.

“Vai e tu também faze o mesmo” (Lc 10, 37)

O texto que fundamenta e inspira a reflexão do papa Francisco na FT é o da parábola do bom samaritano (Lc 10, 29-37). Ao concluí-la, e depois de ouvir a resposta do levita sobre quem foi o próximo daquele homem que caíra nas mãos dos bandidos, Jesus lhe diz: “vai e tu também faze o mesmo”. Esta resposta de Jesus serve também de provocação diante dos gestos, palavras e ações propostos pelo Papa neste tempo de pandemia. Eles podem e devem inspirar os discípulos e discípulas de Jesus, mas também todos os homens e mulheres de boa vontade a “uma nova imaginação do possível”. Mais do que nunca é hora de agir. Para isso, os gestos, palavras e ações do papa Francisco devem provocar os que deles se aproximam, suscitando neles/as gestos, palavras e ações similares. Como Moisés, outrora, diante do dom do Espírito há que também desejar: “que todo o povo do Senhor seja profeta, e que o Senhor ponha nele seu Espírito” (Nm 11, 29).