Uma série de execuções, ameaças e perseguições marcaram o cotidiano dos quilombolas das comunidades Cedro e Flexeira, na Baixada Maranhense, nos últimos dois anos. Uma desembargadora, um procurador e um suplente de vereador estão diretamente envolvidos em conflitos fundiários contra as comunidades
Por Julia Dolce | Infoamazonia
Nos últimos anos, a liderança quilombola Laudivino Diniz raramente tem saído de casa. Dois motivos somam-se à pandemia para explicar seu isolamento: Laudivino está em prisão domiciliar desde novembro de 2019, quando ele e quatro parentes foram detidos por arrancar cercas elétricas colocadas por criadores de búfalos sobre as terras da comunidade quilombola Flexeira. Além disso, ele tem medo de ser executado. As famílias de sua comunidade vivem um cotidiano de violência, envolvendo assassinatos, ameaças de morte e perseguição.
Flexeira fica no município maranhense de Arari, que em 2020 foi um dos líderes do ranking nacional de assassinatos em contexto de conflitos no campo, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Nos últimos dois anos, cinco quilombolas foram assassinados em Arari, dois moradores da Flexeira e três moradores da comunidade vizinha, Cedro. Todos os mortos são militantes do Fóruns e Redes de Cidadania e lutavam contra os cercamentos dos campos naturais da região.
O assassinato mais recente foi o de José Francisco Lopes Rodrigues morador da Cedro, conhecido como “Quiqui”. Depois de ser baleado por um atirador que se escondia em sua residência. Quiqui esteve internado por cinco dias em um hospital na capital São Luís antes de falecer em 08 de janeiro deste ano.
Embora o executor não tenha sido identificado e o inquérito policial não aponte suspeitos, as lideranças comunitárias, familiares e vizinhos de Quiqui afirmam que o seu assassinato e dos outros quatro quilombolas teriam relação direta com um conflito de anos entre as comunidades e fazendeiros locais apontados como grileiros das terras tradicionais.
Entre os envolvidos no conflito de terras estão nomes de importantes autoridades públicas maranhenses. A desembargadora Angela Maria Moraes Salazar e seu marido, o procurador do estado Carlos Santana Lopes, por exemplo, criam búfalos em uma propriedade que ocupa cerca de 100 hectares das terras reivindicadas pelos quilombolas. Além de desembargadora, Salazar também é corregedora do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Maranhão. O influente casal é autor de uma série de ações judiciais contra membros das comunidades. Entre os processados, está, inclusive, a liderança Juscelino Fernandes Diniz executada no início de 2020, no município de Arari.
Em pronunciamento sobre o assassinato de Quiqui, a CPT publicou uma nota denunciando o estado de violência, criminalização de movimentos sociais, execução de lideranças e ataques a defensores de direitos humanos. “Somente em 2021, nove pessoas foram mortas em conflitos por terra no estado, segundo dados da CPT Nacional. Esse número coloca o Maranhão como o estado com o maior número de assassinados do ano passado”.
“Apropriação ilegal” e grilagem
Arari integra a parte amazônica da Baixada Maranhense, no noroeste do estado, e é formada por áreas alagadas anualmente pela cheia do rio Mearim. Cedro é localizada em uma ilha de mesmo nome banhada por água salgada, configurando legalmente uma área da União de posse da Marinha.
As comunidades têm sua subsistência baseada, principalmente, na pesca realizada nos lagos que, na seca, concentram os peixes nas áreas inundadas. Essas áreas, chamadas de campos, são utilizadas coletiva e tradicionalmente pelas comunidades, mas vêm sendo ocupadas por produtores de arroz e criadores de búfalos nas últimas décadas. O cercamento dos campos e o tipo de pecuária impacta na quantidade e no acesso de peixes disponíveis aos quilombolas.
A ocupação do agronegócio em Arari tem aumentado nos últimos anos por conta da proximidade do município de dois portos em construção, o Cajueiro, na capital São Luís do Maranhão, e o Cajual, no município de Alcântara. Os campos inundáveis de Arari integram um território de quase 2 milhões de hectares de terras públicas que formam a Área de Proteção Ambiental (APA) da Baixada Maranhense.
O decreto estadual de criação da APA, de 1991, estabelece a importância dos lagos para a alimentação de populações de baixa renda e impede a “criação extensiva e abusiva de gado bubalino”, designação dos búfalos, sobre os campos.
Mesmo com o decreto, a atividade vem crescendo desordenadamente na região. O procurador Carlos Santana Lopes, por exemplo, comprou sua propriedade de 104,35 hectares, localizada sobre o território reivindicado pela comunidade Cedro, pela pechincha de R$7.280 de um funcionário público municipal chamado Jurandir Araújo Aires, conforme indica a certidão do imóvel registrada em cartório.
As comunidades quilombolas Cedro e Flexeira aguardam, desde 2019, a regularização fundiária junto ao Instituto de Terras do Maranhão (Iterma). Não houve andamento na solicitação. Os territórios não estão titulados no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), nem possuem a certidão de reconhecimento de área remanescente de quilombo pela Fundação Palmares.
Com o acirramento do conflito agrário, as comunidades começaram a se organizar pela retirada das cercas elétricas e de búfalos dos campos, demandando o acesso às áreas.
“Só para você ter uma ideia, em 2014 as famílias não tinham mais peixe para comer”, afirma Laudivino. O quilombola nasceu e vive há 46 anos na Flexeira. “Estamos aqui há muito tempo. Meu avô nasceu e morreu aqui com 98 anos”, enfatiza. Laudivino afirma que após denunciarem o conflito para inúmeros órgãos públicos, incluindo a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Naturais (SEMA), e não obterem respostas, eles decidiram tirar os animais por conta própria.
“A gente não tem problema nenhum com os pastos, só não aceitamos eles botarem búfalo e arames nos campos”. Além da redução da pesca, Laudivino denuncia que os jagunços das fazendas matam os porcos criados pelas comunidades.
Em 2018, o governo do estado instaurou a operação “Baixada Livre” com o objetivo de fiscalizar a instalação de cercas ilegais sobre os campos de Arari. O documento para o Plano de Ação da operação, liderado pela SEMA, considerava que o cercamento dos campos e a criação dos búfalos eram motivos de inúmeros conflitos “que se estendem por décadas” e que representam risco à “segurança pessoal, vida, liberdade de ir e vir, trabalho, renda e segurança alimentar das comunidades que residem na região”.
Em suas considerações finais, o documento reitera que há uma apropriação dos campos inundáveis da Baixada Maranhense pelos ruralistas é que ela é “ilegal”. Após ofensiva dos fazendeiros na justiça, o Plano de Ação não foi levado a cabo. Também em 2018, a SEMA se manifestou contrária à uma ação declaratória de nulidade impetrada pelos fazendeiros, em um ofício protocolado na Procuradoria Geral do Estado do Maranhão. No documento, a SEMA destaca que as propriedades fiscalizadas na operação Baixada Livre estão inseridas em Área de Preservação Permanente (APPs).
“A polícia sabe de tudo e não faz nada”
O advogado Iriomar Teixeira de Lima, assessor jurídico do movimento Fóruns e Redes de Cidadania do Maranhão, representa as comunidades desde 2017, e entende que a regularização fundiária na região é urgente, uma vez que o cercamento dos campos tem “sufocado” as comunidades tradicionais. Lima aponta que, não apenas as denúncias contra a grilagem não são respondidas, mas existe uma criminalização dos quilombolas por parte das autoridades locais. “As autoridades se tornaram inimigas do povo”, afirma.
Nos últimos quatro anos, foram 10 quilombolas presos em Arari por participarem de ações coletivas de retiradas de cerca. Além de Laudivino e de seus quatro parentes, outros cinco mandados foram cumpridos em 2019 contra quilombolas da Cedro. As denúncias vão desde crime de danos até formação de quadrilha e associação criminosa. O processo que prendeu Laudivino e os demais quilombolas da Flexeira também pedia a prisão preventiva do próprio advogado dos quilombolas.
Lima aponta também a omissão do Estado frente aos assassinatos. “Apesar de haver uma pressão muito grande das organizações camponesas para que se investigue os assassinatos como luta pela terra, o governo do estado praticamente se omite de ir nessa linha. Isso é fechar os olhos para as evidências porque, olhando o histórico do município, nos anos anteriores, antes de a comunidade se organizar para retirar as cercas, não havia esse tipo de crime”, contextualiza.
Os dois primeiros assassinatos, da série de cinco, ocorreram em 5 de janeiro de 2020 e são os únicos cuja investigação apontou suspeitos. Juscelino Fernandes Diniz e Wanderson de Jesus Rodrigues Fernandes, pai e filho moradores da comunidade Cedro, foram executados com armas de fogo na presença de esposa, filhos e netos. Segundo o testemunho dos quilombolas, os executores chegaram à comunidade e às suas residências encapuzados, trajando coletes da Polícia Civil e dizendo que estavam cumprindo ordem de prisão.
O inquérito policial, no entanto, aponta que os assassinatos foram consequência de uma discussão com caseiros da fazenda sobre a criação de porcos. Duas pessoas foram denunciadas pelas execuções e reconhecidas pelas famílias das vítimas, mas não foram presas preventivamente porque já tinham decorrido mais de 60 dias do crime.
Lima e as lideranças quilombolas questionam a linha de investigação, alegando que a polícia tenta desvincular o crime da luta por terras na região. A quilombola Valéria*, moradora da Cedro, relata que a comunidade não recebe informações sobre o andamento das investigações. “Não há nenhum tipo de resposta para a comunidade. Não sabemos se tem envolvimento com os grileiros da comunidade, nada. A gente denuncia, faz nota, exige pronunciamento do governo, mas nunca tem uma resposta”, lamenta Valéria.
Sobre a investigação do caso de Quiqui, Valéria afirma que a comunidade está desnorteada. “Ele era uma pessoa que não arrumava confusão, seu único conflito era a luta pelos direitos de terra aqui da comunidade”, conta. “Eles tentam eliminar as lideranças do quilombo, as pessoas que estão no dia-a-dia lutando pela nossa resistência, enfrentando o latifúndio. Já nos ameaçavam com prisão e agora decidiram eliminar via matança”.
Os quilombolas da comunidade Flexeira também não têm nenhuma informação sobre investigações policiais dos assassinatos ocorridos na comunidade no ano passado.
Em 05 de junho de 2021, o quilombola Antônio Gonçalo lavava sua moto em frente à sua casa quando dois homens o executaram a tiros. Já na noite de 29 de outubro, o quilombola João de Deus Moreira Rodrigues foi alvejado por pistoleiros enquanto estava sentado em frente à sua casa. Anteriormente, Rodrigues havia sobrevivido a outro atentado, em 07 de dezembro de 2020, quando foi alvejado por dois tiros nas costas.
Na ocasião dos assassinatos de Juscelino e Wanderson, uma carta pública assinada por diversas associações quilombolas e camponesas, movimentos campesinos, sindicatos e partidos políticos, denunciou que as mortes faziam parte de um contexto de milícias privadas de fazendeiros.
Em nota, a Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular do Maranhão (Sedihpop) informou que “as comunidades tradicionais de Arari são assistidas pela Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (Coecv), que as tentativas de homicídios estão sendo investigadas e que as vítimas e familiares foram acolhidas pelos programas de proteção do estado”. A Sedihpop informou também que as denúncias da comunidade foram encaminhadas para o Ministério Público e para a Defensoria Pública do estado
Já a família do Quiqui, segundo Valéria, chegou a pedir proteção à Secretaria enquanto o quilombola estava internado no hospital, temendo que houvesse nova tentativa de homícidio. “Mas aí ele morreu e a Secretaria não se manifestou mais em nada, nem sequer mandou as condolências para família”, completa.
Juscelino e Wanderson estavam entre os cinco moradores da Cedro que também foram presos, em 2019, por terem se organizado pela derrubada das cercas elétricas ao redor dos campos da comunidade. José Domingos, outro quilombola que também foi preso na ocasião, sofreu uma tentativa de homicídio no último 17 de dezembro.
Além disso, Juscelino respondia a duas, de diversas, ações imputadas por fazendeiros com os quais as comunidades têm conflitos. Os processos acusam os quilombolas de esbulho ou turbação e têm como objetivo impedir a construção de casas ou roçados nas terras que tradicionalmente ocupam. Uma das ações tem como foco impedir a abertura de uma trilha para as crianças quilombolas trafegarem para a escola, uma vez que o caminho historicamente usado por elas agora era usado para a criação de búfalos.
Laudivino Diniz é categórico ao afirmar que existe relação entre a disputa por terras e os assassinatos. “A gente com certeza suspeita que os grileiros estejam por trás [dos assassinatos]. Eles se juntam, formam grupos e dão força um para os outros”,
Os quilombolas suspeitam da inoperância da Polícia Civil de Arari nos casos. “A polícia sabe de tudo, mas não faz nada. Quando a gente registra Boletim de Ocorrência não acontece nada, mas quando os fazendeiros registram a polícia vem nos intimidar e nos obriga a prestar depoimento”, relata.
Em 2020, após os assassinatos de Juscelino e Wanderson, os quilombolas chegaram a se manifestar em frente à delegacia da Polícia Civil, levando representações de caixões que simbolizavam os assassinados. Um novo inquérito foi então aberto pela delegacia, acusando os moradores das comunidades de estarem ameaçando de morte os policiais. Antônio Gonçalo, um dos moradores da Flexeira assassinados no ano passado, está entre os denunciados neste inquérito.
Segundo o advogado Iriomar Lima, o então delegado da Polícia Civil de Arari, Alcides Martins Nunes Neto, chegou a ser afastado pela Secretaria de Segurança Pública, em 2020, após inúmeras denúncias das organizações quilombolas. “Estava explícito que ele tinha tomado parte. Nada que a comunidade denunciava o delegado abria procedimento investigativo, mas do lado inverso ele era bastante diligente”, afirma Lima. Apesar do afastamento, não foi aberto nenhum procedimento interno contra Neto.
Em novembro do ano passado, Jan Jarab, representante da ONU Direitos Humanos para a América do Sul, esteve no Brasil e visitou as comunidades quilombolas da Baixada Maranhense, onde ouviu os relatos de violências e assassinatos contra as lideranças locais. Jarab também se reuniu com o governador do Estado, Flávio Dino, e com a Defensoria Pública da União, além de membros de comunidades tradicionais e da sociedade civil. As visitas do representante da ONU devem constar no relatório de violações de Direitos Humanos produzido anualmente pela entidade.
Poderosos entre os grileiros
A maior parte das ações contra as comunidades quilombolas foram impetradas pelo casal Angela Maria Moraes Salazar e Carlos Santana Lopes. Segundo Valéria, embora os donos não “botem os pés” nas terras desde que realizaram visita de vistoria para comprar a terra, chamada de Fazenda Ilha Bela, em fevereiro de 2001, os caseiros da desembargadora e do procurador frequentemente ameaçam os quilombolas. “Um dos caseiros já chegou a puxar a arma na cara de um morador da comunidade durante uma discussão”, lembra.
Lopes é sócio da Associação dos Criadores do Estado do Maranhão (Ascem), organização de pecuaristas com importante inserção no governo do estado. Representantes da Ascem com frequência são recebidos por instituições e funcionários públicos para expor suas demandas.
Em junho de 2017, uma matéria publicada na agência de notícias do estado informava a visita de membros da Ascem ao Porto de Itaqui, localizado em São Luís. Na ocasião, eles foram recebidos pelo presidente da Empresa Maranhense de Administração Portuária. Já em setembro de 2019, membros da Ascem visitaram o presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão e pediram maior participação do Poder Judiciário na Exposição Agropecuária do Maranhão (Expoema). “Os serviços prestados pelo Poder Judiciário têm grande alcance social e serão muito importantes para a comunidade e aos cidadãos que participarão do evento”, afirmou o presidente da Ascem na ocasião, de acordo com uma matéria publicada no site do TJMA.
Entre as ações impetradas por Carlos Santana Lopes e Angela Salazar está um mandado de segurança na SEMA, em agosto de 2018, com o objetivo de impedir que o estado do Maranhão realizasse a retirada de suas cercas elétricas dos campos públicos de Arari.
O casal abriu dois processos acusando o quilombola assassinado Juscelino Fernandes Diniz e sua família de esbulho e turbação por terem dado início à construção de uma casa de alvenaria dentro da área em que criam búfalos. O casal ainda é autor de outra ação contra Rogério Rodrigues (filho de Quiqui), Sebastião Verde Diniz (irmão do quilombola José Domingos- que sofreu tentativa de homicídio em dezembro de 2021) e outros dois quilombolas, com objetivo de impedir que os moradores da Cedro fizessem seu roçado.
Outro fazendeiro em conflito com a comunidade Cedro é Francisco de Assis Bogea, conhecido como Lico Bogea. Atualmente, Bogea é vereador suplente da Câmara de Arari. Na prestação de contas da sua candidatura em 2020, ele declarou um terreno no “Povoado Cedro” avaliado em R$300 mil e uma casa na comunidade avaliada em R$100 mil, além de 80 cabeças de gado.
Em setembro de 2021, Bogea entrou com uma ação de interdito proibitório contra Quiqui e outras lideranças quilombolas alegando estar sendo impedido de construir uma casa em sua propriedade, a fazenda Mamãe Princesa Isabel, de 211 hectares.
Valéria enxerga as múltiplas ações contra as famílias quilombolas como uma tentativa de “tomarem conta de toda a terra da Cedro”. “Não cabe mais aceitarmos essa violência. A terra é nossa, somos descendentes de quilombos, de antigos de muito tempo e vivemos aqui há mais de 200 anos”.
A reportagem tentou contato com os gabinetes da desembargadora Angela Salazar e do subprocurador do estado Carlos Santana e também com seus respectivos advogados nos processos contra os quilombolas, mas não obteve retorno. Contatado, Lico Bogea e seu advogado também não se manifestaram até a publicação.
*Valéria é o nome fictício de uma das quilombolas que preferiu não se identificar temendo retaliações