“Após décadas de busca por narrativas que superem o governo do neoliberalismo (de)predador, mas que tenha capacidade de dizer mais do que fora capaz o socialismo estatista e a social-democracia, a consciência planetária ganha expressividade pelas lutas ecologistas, ecofeministas, negras, LGBTQI+, juvenis. O Movimento da Economia de Francisco e Clara tem chão quando misturado aos reais sujeitos da transformação”, escrevem Eduardo Brasileiro e Gabriela Consolaro, em artigo para a Coluna Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco.
Eis o artigo.
“Ser humano é buscar a espiritualização de todas as dimensões da existência”
Frei Betto
1. A partilha
Ao fomentar a partilha e, assim, alimentar uma multidão cansada e incrédula, Jesus, por meio da multiplicação dos pães, mais que perpetuar um milagre, apresenta uma proposta. Quando caminha junto de milhares de pessoas que o seguem e acreditam nas palavras de paz e justiça que propõe, o Mestre indica o seguimento da humildade, solidariedade e fraternidade. Na vivência fiel aos ensinamentos que prega, olha o povo com compaixão, temendo que desfaleçam pelo caminho (Mt 15, 32).
A mesma realidade encontramos hoje. Uma multidão cansada de lutar para sobreviver em um sistema falido, que até aqui matou, excluiu e degradou, se encontra incrédula e com medo de deixar esvair pelas mãos a vida num futuro próximo. Mais uma vez, o Pastor olha com compaixão aos discípulos fatigados e chama a um momento novo: de partilha, comunhão e esperança. Convida a trilhar o caminho para a saciedade, a suficiência, a convivência entre irmãs e irmãos na busca da construção do Bem Comum.
Hoje, o Papa Francisco nos convida a realmar a Economia. Da mesma forma, como os apóstolos que olharam ao redor e questionaram com dúvidas como seria possível alimentar uma infinidade de pessoas no meio de um deserto, nós também nos deparamos com as incertezas. Deus nos mostra, de novo, que o milagre reside na partilha, na construção coletiva, na comunhão entre povos que escolhem acreditar no estabelecimento de novos paradigmas - por vezes tomados como radicais, mas que só assim são capazes de responder à radicalidade da normalização da morte, da exclusão e da desigualdade.
A partir da realidade posta, Jesus e seus discípulos organizam a multidão, reúnem as ofertas do povo, suscitam a partilha para todos comerem e saírem saciados. O chamado para a construção da Economia de Francisco e Clara busca dar uma nova perspectiva aos que hoje sofrem com a marginalização de um sistema voltado ao lucro. Com a certeza de uma origem comum, uma pertença recíproca e um futuro partilhado (LS 202), os pães são postos na mesa em uma comunhão entre os povos, para que, outra vez, todos comam e se sintam saciados, envoltos pela fraternidade universal.
Na mística da comunhão fraterna, da construção conjunta, mais uma vez o Papa Francisco nos indica os caminhos necessários para a superação do egoísmo, do individualismo, da ganância e da concentração de poderes e riquezas nas mãos de poucos. Como faz desde o início do seu pontificado, lembra que a mudança – de sistema e de mentalidades – não é só necessária, mas é urgente. Por meio da Encíclica Laudato Si’ fez evidenciar que as mudanças climáticas, a poluição, a perda da biodiversidade, a cultura do descarte, e tantos outros fatores fortalecidos pelo antropocentrismo, corroem a Mãe Terra, que sempre cuidou, mas que também precisa ser cuidada.
Em 2015, houve o alerta de que é preciso cuidar da Casa Comum. Em 2019, nos convocou a re-almar a Economia. Como complemento, lembra, em 2020, de que todo esse processo deve ser guiado pela fraternidade.
A Encíclica Fratelli Tutti invoca o óbvio: “apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, nega a realidade” (FT 7). O anseio mundial de fraternidade é essencial para colocar a vida no centro da discussão econômica. O olhar para o Sul Global, numa perspectiva universal, é olhar para a marginalização de um sistema que se construiu no norte do mundo, posicionando-se cartograficamente em cima para representar a diminuição e limitação do que coloca abaixo. Um convite que se estende a todas as nações, que ultrapassa muros eventualmente erguidos por religiões, que procura a riqueza de cada conhecimento e convicção, caminha neste mesmo rumo: somos todas irmãs e irmãos. Para que seja possível viver a plenitude dessa verdade, novas perspectivas são necessárias, um novo horizonte deve surgir.
2. O Encontro
No caminhar conjunto, Deus não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-lo no chão da realidade. O Papa Francisco, em 2015, no encontro com os movimentos populares em Santa Cruz de La Sierra (Bolívia), nos deixou pistas para a construção das bases da fraternidade universal quando aclamou aos povos a se unirem em três grandes tarefas.
A primeira, uma economia a serviço dos povos, retoma o lugar da economia como cuidado da casa no desafiante contexto de encontrar na própria humanidade a possibilidade de recompor um sistema que gere vida e não exclua. Uma economia biocentrada, retoma o chamado da relação ampla com os seres e não fixada no lucro. A segunda, que é a união dos povos no caminho da paz e da justiça, provoca o lugar de poder na sociedade capturado pelos mercados, corporações e elites e o devolve ao povo, como “artífice do seu próprio destino”. A última tarefa apresentada pelo Papa Francisco nos convida a defender a nossa irmã, Mãe Terra. Substituindo a compreensão de dominação humana, nos coloca como elementos da Criação, subvertendo a lógica de apropriação e degradação das vidas.
O encontro é um lugar da genuína alegria. Nele, a espiritualidade humana se descobre misturada aos diversos tons que compõem a fraternidade universal. Na pluralidade que, com sede de justiça e fome de paz, se descobre artesã do novo tempo em encontros coletivos, em formulações políticas, em incidência territorial, em potencialização de vozes silenciadas, para assim construir uma aldeia de justiça que é totalmente contra a sociedade marcada pelo medo, ódio e indiferença.
Nesse lugar, de comunhão e igualdade, é que Francisco(s) nos chama(m) a estar. Coloca numa mesma perspectiva todas e todos que foram afastadas e afastados de uma discussão econômica, porque sempre foi lucrativo e rentável afastar o povo da possibilidade de conseguir mudar, de vislumbrar as tantas possibilidades de revolução, de saber que tem influência e força. Esse lugar que a tantas mãos nos colocamos a formar, apresenta uma experiência frutuosa que reposiciona o lugar das relações econômicas. Há décadas o capitalismo vem se aprofundando por meio de uma metamorfose discursiva, de concentração dos fluxos financeiros e de deslocamento do poder (corporações acima dos Estados). Essas relações se maximizaram afastando todas as bandeiras da humanização, “partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites” (FT 18).
Na insistência própria de quem acredita no Amor, a espiritualidade presente no mutirão e a poesia das lutas comuns querem ser força colaborativa diante da realidade transcrita de morte. Com o abastecimento da utopia, se objetiva romper as muralhas do individualismo pela rebeldia presente na força mística do povo. Foi o que dom Oscar Romero, arcebispo de São Salvador, assassinado pelos militares em 1980, afirmou: “Se me matarem, ressuscito no meu povo”. Essa coerência impulsiona: encontrar nas causas que brotam da dor, o horizonte de outros mundos possíveis, que só assim possibilitam irromper o novo diante de uma globalização neoliberal.
3. O pacto
A sociedade globalizada pela indiferença viu o projeto de poder estabelecido pelo neoliberalismo ruir o tecido que sustenta a humanidade. Fraturando o bem comum que estabelece a relação comunitária e de partilha privatizou todas as dimensões do nosso convívio. Estabelecendo a competição e o lucro como essência de governos, empresas e famílias, foram forjados homens e mulheres tomados pela mentalidade empresarial e afastados de suas relações com todas as outras formas de vida.
Portanto, mais que crises separadas, o que ocorre diante das crises atuais - com o trabalho, com a democracia, com a fome - faz parte do conjunto de iniciativas que destituíram do poder e exaurem diariamente a humanidade e a Terra. A Economia de Francisco e Clara nos convida a fiar o tecido de uma nova cultura e um/a novo/a homem e mulher. Esse contraponto exige a superação daquilo que o sociólogo coreano Byung-Chul Han apontou ser uma sociedade produtora de uma vida feliz que nega toda complexidade da vida humana e massacra a humanidade com um padrão: a ideologia de felicidade baseada exclusivamente no enriquecimento individual não contribuindo na afirmação de uma cultura e de instituições democráticas.
A afirmação de uma economia na complementaridade das relações toma fôlego por inúmeras iniciativas já existentes no mundo, presentes na Economia Solidária, por exemplo, que restitui o lugar da solidariedade como mote para as relações de troca e compra. O reconhecimento da economia pelo suficiente que considere as relações com a vida do Planeta, tirando a lógica do lucro e emergindo a lógica do ser. Uma economia pela proximidade que ambienta a necessidade de superação do modelo de finanças globais que produzem dinheiro para enriquecimento individual e passemos para modelos diversos que não unifiquem, mas que planificam a diversidade cultural e econômica do planeta.
Um novo humanismo é a emergência de uma sociedade em redes, que partilha e coopera no autocentramento comunitário. Assim, as comunidades se empoderam de uma espiritualidade capaz daquilo que diz a exortação do Papa Francisco, ‘Evangelii Gaudium’: “encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (24), para construir o pacto global por novas economias.
Um pacto não nega as disposições da luta de classes. Pelo contrário, convida os empobrecidos a recomporem o fio de suas relações esgarçadas pelo avanço neoliberal. É fazer-se com os pobres e desse modo historicizar as lutas, reconhecer avanços, construir sínteses e avançar propostas que sejam duplamente anti-sistêmicas, como também promova boicotes e normativas mesmo sendo parcas possibilidades dentro da engrenagem capitalista.
Como diria Josué de Castro em “Geopolítica da fome”: “A humanidade se divide em dois grupos: o grupo dos que não comem e o grupo dos que não dormem com receito da revolta dos que não comem”. A narrativa historicamente (re)produzida está na restrição das forças produtivas (nunca antes tanta gente sem trabalho) e na suposta narrativa que há recursos escassos. A grande dinâmica insurgente é denunciar a fábula das corporações que não geram o valor que acumulam, mas apenas circulam suas riquezas de modo a terem mais super poderes, enquanto anunciamos que há possibilidades pela via da dissociação seletiva e temporal do mercado, de modo que fortaleça novamente os vínculos comuns que unem os pobres da Terra e compõem seu pacto.
4. O movimento
Muito tem se falado para que a Economia de Francisco e Clara seja assumida no seio do povo. Para isso, a partilha, o encontro e o compromisso de um pacto são chaves para um profundo enraizamento popular. Os movimentos populares nascem sempre como oportunidades de unificar uma luta, transformando a dor em sonho. Desse modo, uma economia com alma para a comunhão dos povos só ocorre no banquete da partilha, em que todas e todos colocam os bens à disposição na Mesa do Senhor, na construção da justiça social, do equilíbrio econômico e da paz entre os povos. O gesto de pôr a mesa, comer do mesmo pão e das mesmas ausências coletivas é fazer memória – gesto sagrado dos cristãos/ãs. Memorial que alimenta o servir tecido pela consciência planetária para um encontro amoroso com toda a Vida.
Portanto, após décadas de busca por narrativas que superem o governo do neoliberalismo (de)predador, mas que tenha capacidade de dizer mais do que fora capaz o socialismo estatista e a social-democracia, a consciência planetária ganha expressividade pelas lutas ecologistas, ecofeministas, negras, LGBTQI+, juvenis.
O Movimento da Economia de Francisco e Clara tem chão quando misturado aos reais sujeitos da transformação: associações de moradores/as, observatórios comunitários, coletivos culturais, movimentos inter-religiosos, comunidades agroecológicas, e tantas outras experiências de comunidade e resistência que pisam o chão da vida real. São sinais presentes da superação da política econômica atual. A consciência planetária desloca todas as estruturas de poder postas, diminui sua magnanimidade e as coloca em relação com a vida, com o real e com as interpelações da vida concreta.
A economia como mesa dos povos é ferramenta do encontro para nova relações, erigida a partir dos pequenos, pelos laços de solidariedade (FT 114), é o vínculo possível para dinamização de nova sociedade. Fraternidade, economia solidária, corpos e vozes, são mais que resistência, forjam em si e em suas relações o projeto emancipador. É assim que vamos construir a Economia de Francisco e Clara. Com o pé no chão do povo que sofre, com resistência, esperança e luta.
Autores
Eduardo Brasileiro, sociólogo do Instituto Cultiva, é jovem selecionado do evento em Assis The Economy Of Francesco e membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC)
Gabriela Consolaro, formadora nacional da Juventude Franciscana (JUFRA) do Brasil, é jovem selecionada para o evento em Assis The Economy Of Francesco e membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC)
Publicado em: http://www.ihu.unisinos.br/