SSB
02/02/2021
Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

Elementos básicos do Estado brasileiro: Soberania, democracia e desenvolvimento

No artigo: “Soberania, democracia e desenvolvimento: Uma nota breve”, Celso Amorim, diplomata do Brasil, traz os fundamentos destes três elementos básicos do Estado brasileiro.

O texto foi divulgado originalmente no Caderno 3: “Mutirão por Soberania: autonomia democrática e desenvolvimento territorial”, que faz parte da coleção “Mutirão de Formação” publicada pela 6ª Semana Social Brasileira.

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Celso Amorim, diplomata e político brasileiro | Imagem: Divulgação

Eis o artigo:

Em tempos anormais, como os que vivemos, é conveniente buscar os fundamentos. A Constituição Cidadã de 1988 enumera no seu Artigo Primeiro os elementos básicos do Estado brasileiro. O primeiro deles é a Soberania, conceito cujas origens semânticas remontam à Idade Média, mas cuja formulação como instrumento de análise política tem como marco a obra de Jean Bodin “Os Seis Livros da República”, publicada na segunda metade do século XVI. O objetivo de Bodin, em meio às transformações sociais e políticas que caracterizaram a passagem do feudalismo à era moderna, era definir a autoridade incontrastável de um Estado em relação a determinado território e sua população. Voltado inicialmente para as monarquias absolutistas, o conceito de soberania passou por adaptações decorrentes das mudanças na sociedade e no próprio corpo político. Uma dessas mudanças – talvez a mais revolucionária - consistiu na noção de “soberania popular”, presente na obra de Jean-Jacques Rousseau, que se popularizou e difundiu mundo afora com a Revolução Francesa, passando a constituir elemento essencial da Democracia.

Até então, na maior parte dos países, o “depositário” do poder soberano era o governante, frequentemente um monarca absolutista. A partir da Revolução Francesa e, em graus diversos, as nações passam a ver no “povo” – e não em uma única pessoa ou um grupo restrito – o detentor da autoridade soberana. Nossa Constituição segue essa doutrina, exposta de forma inequívoca no parágrafo único do Artigo Primeiro: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A evolução histórica levou também ao enquadramento do conceito de soberania nos preceitos do Direito Internacional. Em um mundo em que a interdependência é um fato inelutável, a ideia de soberania perdeu seu caráter absoluto. A “comunidade internacional”, apesar de estar muito longe de ter-se constituído plenamente, impõe comportamentos em temas sobre os quais, no passado, cabia exclusivamente ao Estado decidir. As normas sobre meio ambiente, direitos humanos, entre outras, são hoje objeto de acompanhamento por organismos internacionais, ainda que estes não disponham da capacidade de enforcement que os Estados detêm. Uma exceção importante em relação a essa limitação se refere aos assuntos que afetam a paz e a segurança internacionais, em que a competência do Conselho de Segurança da ONU é reconhecida, embora nem sempre respeitada.

Essa evolução de pouco mais de um século, primeiro com a frágil Liga das Nações e, depois, com o sistema bem mais complexo das Nações Unidas, não retira, contudo, a primazia dos Estados na condução dos negócios (em sentido amplo) internos de cada país. Mesmo quando este é chamado a mudar seu comportamento (em meio ambiente, por exemplo), isso ocorre com base na premissa de que as normas internacionais a que um Estado está submetido foram voluntariamente aceitas. Assim, o conceito de soberania permanece intacto, ainda que dentro de um arcabouço jurídico internacional. A Constituição brasileira não se limita a estipular a “soberania” como princípio fundamental. Ao tratar das relações internacionais, o Artigo 4 enuncia, em primeiro lugar, a “independência nacional” entre os princípios que devem reger nossa inserção no mundo.

É importante recapitular essas noções elementares para deixar claros alguns preceitos que têm sido objeto da confusão que se tem criado, por ignorância ou de forma proposital, em tempos recentes. Em primeiro lugar, deve ser ressaltado que não há conflito entre soberania e respeito a normas internacionais, desde que, como assinalado acima, assumidas de forma voluntária, sem pressões indevidas. É o caso das regras contidas no Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, os vários tratados e pactos sobre Direitos Humanos, as Convenções da Organização Internacional do Trabalho, entre outras. É descabido, dessa forma, invocar a soberania para descumprir ou relativizar essas regras. A intenção de agir de forma inconsistente com o Direito Internacional já transparecia na decisão, aparentemente anódina, do Chanceler Ernesto Araújo de alterar o nome da Subsecretaria do Itamaraty que trata dos organismos internacionais (incluindo temas como meio ambiente, direitos humanos, migrações etc), que passou a chamar-se Secretaria de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania. Implicitamente, a ênfase em soberania, neste caso, se inspira em um falso conflito entre esta e o direito internacional. Obviamente, o objetivo era o de menoscabar as normas internacionais às quais o Brasil havia aderido ao longo de décadas. 

Se a soberania não conflita com o respeito às obrigações assumidas de forma autônoma pelo país, ela obviamente não se conforma com a subordinação da conduta de um país aos desígnios de potências estrangeiras, quaisquer que sejam. É verdade que, em muitas situações pode, por força da realpolitik, ser forçado a aceitar regras ou tomar decisões que, se deixadas somente a seu talante, fossem encaminhadas de forma diversa. Caberá, então, a seus governantes, buscar alterar esse curso de ação valendo-se dos instrumentos que a evolução internacional e a coesão interna vierem a disponibilizar. Um caso típico, que envolveu regras internacionais e leis internas, foi o das patentes farmacêuticas. Em um quadro em que doutrinas livre-cambistas, esposadas pelas grandes potências, predominavam nas negociações econômicas, o Brasil e outros países em desenvolvimento foram forçados a aceitar regras estritas de propriedade intelectual, durante as negociações da Rodada Uruguai do GATT, concluídas em 1994. Tratava-se do famoso Acordo sobre Aspectos da Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio, mais conhecido por sua sigla em inglês, TRIPS. Poucos anos depois, com uma situação internacional mudada por fatores tão diversos como a pandemia da AIDS e a necessidade política de lançar-se nova rodada de negociações comerciais, aguçada pelo ataque às torres gêmeas, o Brasil pôde liderar um movimento que resultou na chamada Declaração de Doha sobre Propriedade Intelectual e Saúde (Doha Declaration on Trips and Health), que abriu importantes exceções àquelas regras rígidas, facilitando, por exemplo, a utilização de licenças compulsórias para a produção de medicamentos mais baratos. O que o episódio mostra é que, mesmo quando um Estado é forçado por circunstâncias a adotar um comportamento ou norma que não desejaria, ele pode soberanamente tratar de corrigir as consequências desta decisão imposta, por meios da diplomacia. Seja como for, mesmo quando a pressão externa se tornou difícil de resistir, e o Estado brasileiro foi obrigado a algum tipo de concessão para salvar outros valores ou interesses, ele o fez não por um alinhamento automático com outros Estado, como se tem pretendido agora.  

O tipo de aliança, com total subordinação à linha traçada por Washington, proclamada de forma quase passional pelo Presidente Bolsonaro e por seu ministro do exterior, é incompatível com a noção de soberania e seu corolário básico, a “independência nacional”. Até mesmo os governos militares, que se seguiram ao golpe de 1964, compreenderam essa realidade e não permitiram, passados os primeiros anos, que certas decisões essenciais para o Brasil, como as duzentas milhas de mar territorial (afinal consagrada como zona econômica exclusiva), o programa nuclear pacífico, a exploração de recursos naturais, ficassem à mercê de uma outra nação. O mesmo ocorreu com atitudes importantes em política exterior, sobretudo a partir de Ernesto Geisel, que, entre outras decisões, reconheceu o governo do MPLA em Angola; permitiu o estabelecimento de escritório da Organização de Libertação da Palestina no Brasil e denunciou o acordo militar com os Estados Unidos. Tal posição contrasta com a linha de ação do atual governo em relação a uma variedade de temas, como a ameaça de intervenção na Venezuela (que contrariaria outros princípios do Artigo 4º da Constituição Federal), a denúncia do Tratada da UNASUL, sem ouvir o Congresso Nacional (que o aprovara), votos na ONU sobre religião, gênero e saúde reprodutiva da mulher, em relação aos quais o Brasil tem adotado as posições mais radicalmente retrógradas do governo Trump. Muitos outros exemplos poderiam ser citados.

Como assinalei no início, soberania nacional se confunde, desde Rousseau e da Revolução Francesa, com soberania popular. Cuidar da educação e da saúde do povo é tão importante quanto resguardar nossas fronteiras. Afrontar a soberania popular não é apenas má política; é também uma opção perigosa para os próprios governantes. Basta olhar para os protestos da população em países como o Chile e o Equador, cujos dirigentes se renderam ao neoliberalismo e ao capital financeiro e agora pagam um alto preço por isso. Mais cedo ou mais tarde, o povo vai buscar de volta os seus direitos. É missão dos dirigentes políticos evitar que milhões de vidas sejam sacrificadas antes que isso ocorra. A Pandemia do coronavírus veio pintar com cores mais dramáticas essa situação crítica. Defender a soberania popular é também defender a soberania nacional no seu sentido mais amplo.

*Celso Amorim, diplomata brasileiro, formou-se pelo Instituto Rio Branco, escola diplomática do Brasil, possui pós-graduação em Relações Internacionais pela Academia Diplomática de Viena, na Áustria.