A imagem acima é do Hospital Dom Floriano, na cidade de Óbidos, no Pará | Foto: Marco Santos/Agência Pará

Por Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, bispo da Prelazia de Itacoatiara (AM) | Fonte: CNBB

A crise da saúde no Brasil, no Estado do Amazonas e em nossos Municípios causa-nos muita preocupação, dor, tristeza, gestos de solidariedade, mas, também, indignação.

Solidariedade

“De nossa fé em Cristo nasce, também, a solidariedadecomo atitude permanente de encontro, irmandade e serviço. Ela há de se manifestar em opções e gestos visíveis, principalmente na defesa da vida e dos direitos dos mais vulneráveis e excluídos, e no permanente acompanhamento em seus esforços por serem sujeitos de mudança e de transformação de sua situação” (Documento de Aparecida, nº 394 – negrito nosso).

O Texto Base da CF/2020, nº 177, nos traz uma afirmação do Papa Francisco em Bañado Norte, Paraguai, em julho de 2015: “A fé nos faz próximos, aproxima-nos da vida dos outros. A fé desperta o nosso compromisso com os outros, desperta a nossa solidariedade… A fé que não se faz solidariedade é uma fé morta. É uma fé sem Cristo, uma fé sem Deus, uma fé sem irmãos. O primeiro a ser solidário foi o Senhor, que escolheu viver entre nós, escolheu viver em nosso meio” (negrito nosso).

Nós somos um povo solidário, com as exceções que toda regra tem. São muitas as pessoas aqui na Prelazia de Itacoatiara, no Amazonas, no Brasil e no Mundo que se sensibilizaram fizeram e estão fazendo, na gratuidade, gestos de amor/solidariedade com os pobres e excluídos atingidos pelas desigualdades sociais, pela pandemia do coronavírus e pela crise da saúde no Estado do Amazonas.

Como a tragédia humanitária no Amazonas atinge personagens anônimos que são muito mais que estatísticas. Na imagem acima está o empresário Francisco das Chagas Netto com a avó Maria de Nazareth, 85 anos, sobrevivente do vírus e da falta de oxigênio em Manaus (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)

Queremos fazer nossas as palavras do jornalista Carlos Madeiro da Uol? “De todas as lições, uma que trago encoraja: o exército de populares que foram às ruas ajudar. Pessoas de todos os credos —ou sem— doaram comida, bebida, álcool, máscara… Cantaram para aliviar a dor, oraram juntos, deram assistência psicológica. Mais do que doar, fizeram todos ali se sentir importantes ao menos uma vez, já que o poder público parece tê-los abandonado. Como sempre, os heróis nas histórias mais difíceis são aqueles que menos aparecem“(https://noticias.uol.com.br/saude/2021/01/21).

Podemos aplicar a estas pessoas “que foram às ruas para ajudar” o que diz a Palavra de Deus: existe “mais felicidade em dar do que em receber” (At 20, 35). Estas pessoas estão em sintonia com o ensinamento de João em sua primeira carta, quando nos exorta a não amarmos somente “com palavras e de boca, mas com ações e de verdade!” (3, 18).

Aqui na Prelazia, desde que a crise da saúde em nosso Estado, o Amazonas, se agravou, temos um grupo de Voluntários e Voluntárias, que de forma heroica, vem desenvolvendo um trabalho de solidariedade, que temos chamado de “Puxirum pela Vida”. É um grupo pequeno, para evitar aglomeração, mas que diariamente buscam e recebem doações e distribuem o que recebem para as famílias mais em dificuldades econômicas, para o Hospital Regional e a UPA – Unidade de Pronto Atendimento da cidade de Itacoatiara, que servem a mais cinco municípios da região. Estas pessoas entenderam o ensinamento de Jesus na Parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37) e o que diz Paulo na Carta aos Gálatas: “Em Jesus Cristo, o que vale é a fé agindo pelo amor” (5, 6).

É bonito ver a solidariedade em tantos irmãos e em tantas irmãs distantes do Estado do Amazonas, que ao saberem de nossa realidade, desejaram ajudar. Estas pessoas fizeram como o Papa Francisco nos ensina na Encíclica Fratelli Tutti: “A proposta é fazer-se presente a quem precisa de ajuda, independentemente de fazer parte ou não do próprio círculo de pertença”. O Papa Francisco lembra ainda que o Samaritano “se fez próximo do judeu ferido. Para se tornar próximo e presente, ultrapassou todas as barreiras culturais e históricas” (nº 81).

Esta solidariedade local e de fora, faz-nos lembrar do que disse Santa Dulce dos Pobres: “O importante é fazer a caridade, não falar de caridade. Compreender o trabalho em favor dos necessitados como missão escolhida por Deus” (citado no Texto Base da Campanha da Fraternidade de 2020, p. 47). Podemos ainda lembrar aqui o que diz o Documento de Aparecida: “Alegra-nos o profundo sentimento de solidariedade que caracteriza nossos povos e a prática de compartilhar e de ajuda mútua” (nº 99g).

Para nos estimular na prática da solidariedade, quero trazer este ensinamento de São João Paulo II: “Ainda que imperfeito e provisório, nada do que se possa realizar mediante o esforço solidário de todos e a graça divina, em dado momento da história, para fazer mais humana a vida dos homens e das mulheres, nada se perderá ou será inútil” (Sollicitudo Rei Socialis, nº 47).

Indignação

Diante da situação da saúde no Amazonas e no Brasil temos de nos indignar. Jesus disse que se os seus discípulos “se calarem as pedras gritarão” (Lc 19, 40). Não devemos dar trabalho às pedras, por isto precisamos falar!

A nossa Constituição Federal no Capítulo II – Dos Direitos Sociais, Artigo 6º, elenca os direitos sociais: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados. No Título VIII – Da Ordem Social, Capítulo II – Da Seguridade Social, Seção II – Da SaúdeArtigo 196, diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (negrito nosso).

A Constituição do Estado do Amazonas afirma no Artigo 2º, VIII, que são objetivos prioritários do Estado, entre outros a saúde pública e o saneamento básico. No Capítulo III – Da Política Fundiária, Agrícola e Pesqueira, Seção II – Da Saúde, Artigo 182, afirma que a saúde é direito de todos e dever do Estado, assegurado mediante políticas sociais, econômicas e ambientais que visem à eliminação de riscos de doenças e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, entendendo-se como saúde o resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, saneamento básico, trabalho, transporte, lazer, acesso e posse de terra e acesso aos serviços e informações de interesse para a saúde” (negrito nosso).

Portanto, a saúde é um dos direitos sociais garantido pela Constituição do Brasil, um direito de todos e um dever do Estado, segundo a Constituição Federal e a Constituição do Estado do Amazonas.

Se é assim, por que chegamos a esta triste realidade da saúde em nosso país e em nosso Estado? Por que este direito constitucional está sendo negado ao nosso povo? Resposta óbvia: porque o Estado, ou seja, o Governo Federal e o Governo do Estado do Amazonas, não estão cumprindo o seu dever constitucional. Se não estão cumprindo o dever constitucional, então devem ser responsabilizados pelo caos na saúde pública, pela falta de vagas nos hospitais, pela falta de oxigênio, pelas mortes das pessoas.

Como diz o Papa, isto há de ser chamado com o nome devido: injustiça e crime (cf. Querida Amazônia, 14). Com o que está acontecendo com a saúde no Brasil e no Estado do Amazonas, devemos acolher o pedido de nosso Papa e nos indignar, não podemos nos habituar com o mal, e nem deixar que anestesiem a nossa consciência social (cf. Querida Amazônia, 15). Diz-nos ainda o Papa Francisco: “A Igreja não pode estar menos comprometida, chamada como está a escutar os clamores dos povos amazônicos, ‘para poder exercer com transparência seu papel profético’” (Querida Amazônia, 19).

A indignação deve nos levar a ação. Por isto, passada a pandemia da covid-19, teremos de trazer de volta este debate. Teremos, como Igreja no Brasil, na Amazônia e no Estado do Amazonas, de provocar a reflexão sobre as causas do caos em nossa saúde pública.  As consequências já estamos vivendo agora: doença, dor, tristeza, angústia, medo, morte. Mas teremos que pensar e ajudar nosso povo a pensar nas causas de tudo isto, como já nos ensinou o Concílio Vaticano II: “sejam eliminados não apenas os efeitos, mas as causas dos males” (Apostolicam Actuositatem, 8).

Passada a pandemia da covid-19, teremos de fazer incidência política de forma mais organizada, para que o direito à saúde seja respeitado, para que o SUS – Sistema Único de Saúde seja fortalecido, para que a verba destinada à saúde seja ampliada, para que a preservação, a recuperação e o tratamento da saúde sejam verdadeiramente garantidos pelos nossos governantes.

Precisamos continuar insistindo que “é sumamente importante uma adequada formação dos agentes pastorais na Doutrina Social da Igreja” (Querida Amazônia, 75), na atuação dos leigos e das leigas no mundo da política, do que o Papa Francisco chama na Encíclica Fratelli Tutti de “a política melhor, a política colocada a serviço do verdadeiro bem comum” (nº 154). A política que volte a colocar “a dignidade humana no centro” (nº 168), que trabalhe por um “desenvolvimento humano integral, que implica em superar a ‘ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida em um projeto que reúna os povos’” (nº 169).