Terra, Teto, Trabalho: Direitos Sagrados

Horta orgânica, pré-assentamento Terra Prometida, em Sobradinho (DF) | Foto: Tainá Aragão/Cáritas Brasileira

Sensibilizar a sociedade, mobilizar e articular forças sociais, fortalecer e multiplicar as lutas por direitos, desencadear novos processos de luta e organização populares em torno do desafio/apelo/exigência maior de nosso tempo: "nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que provém do trabalho”

          O serviço aos pobres sempre ocupou um lugar central na vida da Igreja. Isso se pode comprovar na Sagrada Escritura e em toda a Tradição da Igreja. Aparece como constitutivo de sua “essência” e como “dever” de “cada um dos fiéis” e da “comunidade eclesial em todos os seus níveis”[1]. É que o amor a Deus é inseparável do amor ao próximo (Cf. 1 Jo 4, 20). E o amor ao próximo, por mais universal que seja, tem no caído à beira do caminho (Cf. Lc 10, 25-37) ou nos pobres e sofredores (Cf. Mt 25, 31-40) seu critério e sua medida escatológicos. Como recordava o papa João Paulo II, “é certo que ninguém pode ser excluído do nosso amor [...]; mas, segundo as palavras inequívocas do Evangelho [Mt 25, 35-36], há na pessoa dos pobres uma especial presença de Cristo, obrigando a Igreja a uma opção preferencial por eles”. E nisso também “a Igreja mede a sua fidelidade de Esposa de Cristo”[2].

          Mas se o serviço aos pobres é uma constante na histórica da Igreja, a forma como foi sendo desenvolvido varia muito de acordo com o tempo, com as necessidades e com as possibilidades de ação. O mais comum sempre foi e continua sendo a assistência a necessidades imediatas (comida, roupa, remédio, abrigo etc.) e o cuidado de pessoas em situação de vulnerabilidade (idosos, doentes, órfãos etc.). Entretanto, a consciência moderna de que a pobreza e a marginalização não são um fato isolado e casual, mas um fenômeno massivo que é fruto do modo de organização da sociedade obrigou a Igreja a ampliar sua compreensão e prática de serviço aos pobres. Além da sempre necessária assistência imediata aos necessitados, é preciso empenhar-se pela transformação da sociedade. E aqui não basta o apelo à “conversão do coração”. É preciso também lutar pela transformação das estruturas da sociedade. É a dimensão socioestrutural da caridade ou da opção pelos pobres[3].

Pobreza e sociedade

          Ao longo do século XX foi crescendo na sociedade e na Igreja a consciência de que a pobreza, opressão e marginalização não são um fato isolado e casual, mas um fenômeno massivo e um produto social, fruto do modo como a sociedade está organizada. E a consciência desse caráter massivo e estrutural da pobreza e marginalização social teve profundas consequências sociopolíticas e eclesiais. Por mais importante e necessário que seja o serviço caritativo-assistencial, não é suficiente. É preciso se enfrentar com uma forma de organização da sociedade que favorece e protege os interesses dos setores dominantes e produz pobreza e marginalização social. É preciso criar mecanismos que limite a acumulação de bens e poder, que distribua riqueza, que garanta as condições materiais, sociais, políticas, culturais e religiosas de reprodução da vida. Numa palavra, é preciso transformar a sociedade.

          Certamente, há indícios muito claros disso que estamos chamando dimensão socioestrutural da caridade ou da opção pelos pobres na Escritura e na Tradição da Igreja. Pensemos, por exemplo, na denúncia dos profetas contra a acumulação de riquezas, contra o salário não pago dos trabalhadores, contra a violação do direito das viúvas nos tribunais, contra a espoliação dos bens dos pequenos, contra um culto aliado à injustiça social e, sobretudo, em sua defesa radical do direito do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro. Pensemos também nas reflexões sobre a destinação universal dos bens e sobre a política como arte do bem comum, desenvolvidas na Tradição da Igreja. Mas a consciência explícita disso e, sobretudo, das consequências pastorais daí decorrentes é bastante recente na Igreja. Está profundamente ligada ao desenvolvimento das encíclicas sociais: da Rerum novarum de Leão XIII (1891) à Laudato si’ de Francisco (2015). Tem no Concílio Vaticano II, particularmente na Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje, um marco fundamental e decisivo. Foi profundamente marcada pelo dinamismo eclesial latino-americano, desencadeado pela Conferência de Medellín. E tem sido retomada e revigorada pelo papa Francisco, tornando-se mesmo um ponto central de seu magistério pastoral[4].

          A Conferência de Medellín (1968) já falava de “estruturas opressoras”, “estruturas injustas”, “violência institucionalizada” e da necessidade de “novas e renovadas estruturas”[5]. E a Conferência Puebla (1979) reconhece que a pobreza “não é uma etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas”[6] e fala explicitamente de “dimensão social do pecado”, de “estruturas de pecado” ou de “pecado social”[7]. E isso vai repercutindo e se consolidando no magistério da Igreja.

          Em sua Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, Paulo VI, não só afirma que “entre evangelização e promoção humana – desenvolvimento, libertação – existem laços profundos”[8], mas afirma claramente que “a Igreja tem como algo importante e urgente que se construam estruturas mais humanas, mais justas, mais respeitadoras dos direitos da pessoa e menos opressivas e menos escravizadoras”[9]. Em sua Carta Encíclica Sollicitudo rei sociales, João Paulo II, fazendo uma leitura teológica dos problemas modernos, fala explicitamente de “estruturas de pecado”[10] e propõe como alternativa a essas “estruturas de pecado” a “solidariedade” em todos os âmbitos e níveis da sociedade[11]. Nessa tradição, o Compêndio de Doutrina Social da Igreja fala de “pecado social”[12] e “estruturas de pecado”[13] que devem ser superadas e transformadas em “estruturas de solidariedade”[14] e fala da “caridade social e política”[15].

          Francisco tem denunciado fortemente o atual sistema socioeconômico e insistido na necessidade de mudança estrutural[16]. Reconhece que “a desigualdade é a raiz dos males sociais”[17] e afirma com Bento XVI que, “embora a ‘justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política’, a Igreja ‘não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça’”[18]. Fala do “amor civil e político” como “uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações entre indivíduos, mas também ‘as macro relações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos’”[19] e da necessidade de conversão social: “não basta que cada um seja melhor [...] aos problemas sociais responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias”[20].

          De modo que o serviço aos pobres ou a opção pelos pobres na Igreja tem uma dimensão socioestrutural fundamental e irrenunciável que diz respeito à organização da sociedade e se efetiva na luta pela transformação das estruturas da sociedade.

          Não basta ter consciência de que a opção pelos pobres tem uma dimensão socioestrutural. É preciso empenho real e efetivo pela transformação das estruturas da sociedade. E isso se dá tanto pela conscientização quanto pelo fortalecimento de processos e organizações populares de luta por direitos.

Transformação da sociedade.

          Falando do auxílio que a Igreja pode prestar à sociedade humana, o Concílio Vaticano II diz que de sua “missão religiosa decorrem encargos[21], luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da comunidade humana segundo a lei de Deus”[22]. Medellín é ainda mais concreto e preciso ao afirmar que “criar uma ordem social justa, sem a qual a paz é ilusória, é uma tarefa eminentemente cristã” e que “a justiça e consequentemente a paz conquistam-se por uma ação dinâmica de conscientização e de organização dos setores populares”[23]. Na mesma direção aponta Paulo VI ao afirmar que “no campo social, a Igreja sempre teve a preocupação de assumir um duplo papel: o de iluminar os espíritos [...] e o de entrar em ação e difundir, com uma real solicitude de serviço e de eficácia, as energias do Evangelho”[24]. Tudo isso tem sido retomado e explicitado por Francisco numa dupla insistência: Primeiro, numa denúncia constante contra o que tem chamado “cultura do descartável”, “ideal egoísta”, “globalização da indiferença”[25] e no anúncio e na convocação para uma cultura da solidariedade[26]. Segundo, no diálogo e na cooperação com os movimentos populares como sujeitos privilegiados da transformação da sociedade: “Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, em vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos 3Ts (Terra, Teto, Trabalho) e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudanças nacionais, regionais e mundiais”[27].

          Isso aponta para um duplo aspecto no modo de colaboração da Igreja com o processo de transformação da sociedade: um aspecto cultural e um aspecto social. Por um lado, a Igreja deve denunciar tudo que ofende e destrói a vida humana e o conjunto da criação; deve mostrar a incompatibilidade entre a fé e toda forma de injustiça, preconceito, discriminação e banalização da vida humana; deve ser defensora radical e incondicional dos direitos humanos; deve sensibilizar a sociedade para as situações de injustiça e sofrimento e ajudar a compreender as causas da pobreza e marginalização social; deve anunciar e cultivar valores e práticas de compaixão, solidariedade e justiça; enfim, deve ser promotora da “civilização do amor” ou da “cultura de solidariedade”. Por outro lado, deve cooperar com os processos e movimentos sociais, particularmente dos setores pobres e marginalizados da sociedade, na medida em que lutam pela conquista, garantia e defesa de seus diretos; deve despertar e promover lutas e organizações populares por direitos; deve criar pastorais e organismos para acompanhar os pobres em suas lutas e organizações populares; deve fortalecer a articulação de forças sociais em defesa do bem comum a partir da garantia de direitos dos pobres e marginalizados[28]. E deve fazer isso com os meios e a força de que dispõe: a força da palavra e força de sua organização institucional.

6ª Semana Social Brasileira

          A 6ª Semana Social Brasileira se insere nesse processo mais amplo de colaboração com a transformação da sociedade. Quer despertar, renovar e dinamizar essa dimensão socioestrutural da fé e da missão evangelizadora da Igreja. E faz isso convidando as igrejas, as religiões, as organizações populares e o conjunto da sociedade para um grande “mutirão pela vida”. Está em jogo a vida de grande parte da população, a quem é negada até as condições materiais básicas de sobrevivência: “terra, teto, trabalho”. Essa situação se impõe como imperativo ético-religioso maior de nosso tempo e exige um grande mutirão que articule forças sociais e fortaleça e desencadeie processos sociais em vista da garantia desses direitos que, como afirma o papa Francisco, são “direitos sagrados”[29]. O objetivo imediato é sensibilizar a sociedade, mobilizar e articular forças sociais, fortalecer e multiplicar as lutas por direitos, desencadear novos processos de luta e organização populares em torno do desafio/apelo/exigência maior de nosso tempo: “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que provém do trabalho”[30].

          Se isso envolve e deve comprometer todos os seres humanos (senso ético-humanitário), envolve e deve comprometer de modo particular os crentes (fé religiosa). No caso concreto do cristianismo, cujo centro é o amor fraterno e cuja medida são as necessidades dos pobres e marginalizados, é algo decisivo. Por isso, não é estranho que a Igreja assuma a tarefa de convocar, mobilizar e articular um “mutirão pela vida”. O cuidado da casa comum, a defesa da vida, a garantia dos direitos dos pobres e marginalizados estão no centro do Evangelho. “Terra, Teto e Trabalho”, dizia o papa Francisco no primeiro encontro com os movimentos populares, “são direitos sagrados”. E “exigi-lo não é estranho” à Igreja. “É a doutrina social da Igreja”[31].

Francisco de Aquino Júnior é Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte (CE); professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).


[1] BENTO XVI. Carta Encíclica Deus Caritas est: Sobre o amor cristão. São Paulo: Paulinas, 2008, n. 22, 20.

[2] JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte. São Paulo: Paulinas, 2002, n. 49.

[3] Cf. AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Pastoral social: Dimensão socioestrutural da caridade cristã. Brasília: CNBB, 2016.

[4] Cf. AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Teologia em saída para as periferias. São Paulo: Paulinas, 2019.

[5] Cf. CELAM. Conclusões de Medellín. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 7, 10, 31, 11, respectivamente.

[6] CELAM. Evangelização no presente e no futuro da América Latina: Conclusões da Conferência de Puebla. Texto Oficial. São Paulo: Paulinas, 1979, n. 30.

[7] Cf. Ibidem, n. 28, 70, 73, 281, 282, 452, 487, 1258.

[8] PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi: Sobre a evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo: Paulinas, n. 31.

[9] Ibidem, n. 36.

[10] JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Sollicitudo rei sociales. São Paulo: Paulinas, 1990, n. 35-37.

[11] Cf. Ibidem, n. 38-40.

[12] Cf. PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio de Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2011, n. 117.

[13] Cf. Ibidem, n 119, 193, 332, 446, 566.

[14] Cf. Ibidem, n 193, 332.

[15] Cf. Ibidem, n 2007-208.

[16] FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii gaudium: Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013, n.53-60; IDEM. Discurso no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Brasília: CNBB, 2015, p. 6-9.

[17] IDEM. Exortação Apostólica Evangelii gaudium. Op. cit., n. 202.

[18] Ibidem, n. 183.

[19] IDEM. Carta Encíclica Laudato si’: Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, n. 231.

[20] Ibidem, n. 219.

[21] A versão portuguesa das Vozes curiosamente traduz “múnus” por “benefícios”. A versão portuguesa do site do Vaticano traduz por “encargo”.

[22] Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 42. In: COMPÊNDIO DO VATICANO II: Constituições, Decretos, Declarações. Petrópolis Vozes, 1995.

[23] CELAM. Conclusões de Medellín. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 33, 32, respectivamente.

[24] PAULO VI. Carta Apostólica Octogesima adveniens. São Paulo: Paulinas, 2011, n. 48.

[25] Cf. FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Op. cit., n. 53, 54, 67.

[26] Cf. Ibidem, 58, 188-189; IDEM. Discurso aos participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Brasília: CNBB, 2015, p. 6.

[27] IDEM. Discurso no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Brasília: CNBB, 2015, p. 9.

[28] Cf. AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Organizações populares. São Paulo: Paulinas, 2018.

[29] IDEM. Discurso aos participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Op. cit., p. 8.

[30] Ibidem, p. 18.

[31] Ibidem, p. 8.