SSB
23/11/2020

“A educação é, sobretudo, uma questão de amor e responsabilidade que se transmite, ao longo do tempo, de geração em geração. Por conseguinte, a educação apresenta-se como o antídoto natural à cultura individualista”, papa Francisco em videomensagem por um novo Pacto Educativo Global

Crianças do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento | Foto arquivo: cpcd.org.br

Em entrevista, Irmã Delci Franzen fala do papel da família, de professores, escolas públicas e católicas, e da própria 6ª Semana Social Brasileira na efetivação de uma aliança mundial pela educação

Por Karla Maria | 6ª Semana Social Brasileira

Irmã Delci Franzen, secretária executiva do Movimento de Educação de Base (MEB)

A palavra educar vem de educare, termo em latim cuja composição remete a “conduzir” ou “levar”. Nesta entrevista, Irmã Delci Franzen, secretária executiva do Movimento de Educação de Base (MEB), que é parceiro na construção da 6ª Semana Social Brasileira (SSB), nos conduz a olhar para o “Pacto Educativo Global”, uma proposta audaciosa do papa Francisco de modo mais atento e realista a partir das realidades e desafios postos inclusive no sistema educacional católico.

Em sua encíclica Laudato Sí, Francisco convidou a todos a cooperarem com o cuidado da Casa Comum e a enfrentarem juntos os desafios que se apresentam. Agora, em seu pacto pela educação, renova o convite para o diálogo no qual todos possam colocar seus talentos e habilidades na construção de processos educacionais que visem a desenvolver uma nova solidariedade universal e mais acolhedora. O objetivo é “reavivar o compromisso em prol e com as gerações jovens, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão”, como consta do documento,

De maneira pormenorizada e a partir do terreno em que a educação se constrói no Brasil, de fragilidades e desconhecimentos, Irmã Delci fala do pacto que já abraçou, a partir também de sua trajetória ligada aos direitos da dignidade da pessoa humana, sua experiência como educadora nas comunidades, como assessora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para as Pastorais Sociais, articuladora da 3ª Semana Social Brasileira (SSB) e coordenadora da 4ª SSB.

A baixa qualidade de ensino, a evasão escolar, os impactos da pandemia, a precarização do trabalho do educador e da educadora, o papel das escolas católicas e públicas e da família no Pacto Educativo Global proposto pelo papa Francisco são alguns dos temas apontados pela religiosa, que defende processos integrais e bonitos no ensinar e aprender na escola da vida.

“O Pacto Educativo Global” pode ajudar a amenizar os impactos da pandemia de Covid-19 nos processos educacionais?

A pandemia desnudou uma série de problemas que são anteriores ao início da Covid-19, ela desnudou o processo de exclusão também no campo da educação, apontando não só a falta de acesso às tecnologias, mas a exclusão de acesso à educação. Hoje temos 14 milhões de desempregados e 13 milhões de analfabetos, além de uma evasão escolar que já vinha sendo grande por parte de jovens que buscam trabalho para compor a renda das famílias. Isso também foi agravado pela pandemia.

O MEB [Movimento de Educação de Base], que trabalha com alfabetização de jovens e adultos, a todo instante se afronta com isso. Cada vez mais jovens abandonam a escola no ensino fundamental e vão para um grupo de semianalfabetos ou quase analfabetos. O ensino médio está todo projetado para o mercado de trabalho e vai elitizando o ensino superior. Vimos as dificuldades que crianças e jovens atravessam para acompanhar o processo de ensino a distancia e o quanto esse processo foi excludente e castigou o trabalhador do campo da educação, com o acúmulo de horas de trabalho, desde o professor da pré-escola até o professor universitário.

E é aí que o Pacto Educativo entra, apontando a necessidade de valorização do educador e da educação de forma mais integral e humanizadora.

O papa aponta a necessidade de mudanças...

São necessárias mudanças na civilização, porque esse modelo, que não somente acumula capital, mas promove desigualdades sociais e expulsa do mundo do trabalho e destrói a natureza, não serve. É preciso mudar, por isso ele vem com o pacto, porque para essa mudança são necessários processos educativos, uma nova educação. O papa diz que são necessárias trajetórias educativas: uma educação humanizadora, para uma economia solidária e para uma ecologia integral. Esse é o núcleo do pacto.

Entendemos que o papa Francisco faz uma interligação entre esses temas: terra, teto e trabalho, economia, ecologia e educação. É preciso fazer uma leitura interligando tudo isso.

Um pacto que olha para a integralidade da própria dinâmica da sociedade?
Sim, porque tudo está conectado, e o papa nos chama para criar esses processos educativos para uma nova humanidade, uma educação humanizadora que coloque as pessoas e os direitos humanos no centro, para uma economia solidária possível, para enfrentar a exclusão e a crise ambiental que nós estamos vivendo.

Há possibilidade concreta de fazer pactos em um mundo de tantos muros e ódios?

De fato estamos vivendo em um mundo de antipactos. Há forças políticas e econômicas contrárias a tudo que já foi pactuado em âmbito de povos, de nações, de organizações internacionais, a favor dos direitos da cidadania, então, agora é preciso que alguma coisa seja dita e feita diante dos antipactos que são antivida e antiecologia. Uma vivência ativa de uma pactuação de uma de uma educação libertadora e humanizadora, e para isso o papa diz que é necessário uma aliança global. E aqui digo algo muito importante para a Semana Social Brasileira: a gente precisa tirar a subordinação da educação ao desenvolvimento econômico, porque ela se tornou mercadoria e não um bem universal, um bem comum.

Para a Unesco[órgão da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura], a educação faz parte do Índice de Desenvolvimento Humano, mas ao mesmo tempo a Organização Mundial do Comércio define a educação como mercadoria, então esse pacto é uma aliança contrária a esse processo de privatização, de mercantilização da educação. Esse é o convite do papa.

Ao lado desse processo de privatização, há a precarização da qualidade do ensino e da qualidade de vida dos trabalhadores do setor...

Precarização, claro, e elitização, exclusão. Veja como é profundo esse convite do papa Francisco. Questões que nós do MEB sempre fizemos. E é interessante que esse pacto seja proposto quando celebramos o centenário de Paulo Freire.

Interessante a senhora citar Paulo Freire, um educador referência em todo o mundo e também criminalizado, desconhecido por tantos...

Paulo Freire é o patrono da educação no Brasil, mas é tratado com tamanha ignorância devido à onda obscurantista que nos vista, uma onda da negação do saber e da ciência. Nesse contexto, Paulo Freire é uma referência de educação libertadora, contrária à educação que esse modelo precisa para criar trabalhadores para o mundo do mercado, porque se fosse para o mundo do trabalho estaria ótimo. Paulo Freire dizia: “se a educação sozinha não muda o mundo, sem ela tampouco a sociedade muda”. Então essa mudança que a gente quer só é possível pela educação.

Em mensagem, o papa Francisco diz que é preciso contar com a sociedade, com a família e com a escola para a aplicação desse pacto, mas como as nossas famílias podem assumir uma corresponsabilidade com essa educação libertadora se observamos dentro das famílias a negação da ciência, por exemplo, com negação de vacinas e a desautorização da autoridade dos professores? O papa pede também a valorização dos professores... A Igreja observa essa realidade?

Os desafios são muito grandes tanto para a escola quanto para a família. Para a escola particular, pública, mas também para o processo de evangelização da Igreja, que precisa fazer melhor uma educação para além da catequese, e a Igreja pode e faz isso, mas precisa dar uma atenção especial para inserir as famílias na realidade. A nossa evangelização ainda se dá por meio de uma catequese fragmentada, apenas voltada para sacramentos, doutrinação e devoções.

A família tem um papel muito mais amplo do que no entorno da sua casa. É preciso educar seus filhos não só para o mercado de trabalho, para o sucesso individualista e a concorrência, e esse é o modelo de educação que as famílias muitas vezes sonham e exigem para seus filhos. Nesse sentido, por mais que a escola procure fazer a família participar, muitas vezes o que ela consegue é apenas fazer com que a família participe do crescimento profissional, e isso já é um bom caminho, mas não o bastante...

O que seria fundamental, então?

Seria fundamental que as famílias buscassem essa visão de uma sociedade solidária, que Francisco traz na Fratelli Tutti, que o fundamento de toda humanidade e de toda sociedade é que somos todos irmãos. Esse é o fundamento, e se estiver no centro da educação e da evangelização, aí nós teremos encontrado um caminho para a verdadeira educação. Essa é a verdadeira educação libertadora de que Paulo Freire fala e que o papa Francisco a chama de humanizadora. Se você ler os dois, verá que é a mesma coisa. A proposta de Paulo Freire é profundamente humanizadora.

Para os que criticam Paulo Freire, o que faltou compreender da proposta, da pedagogia dele?

Infelizmente Paulo Freire foi ligado a uma compreensão de esquerda e até comunista. Há um preconceito e há resistência a tudo que é ligado à educação libertadora, integradora, e há muita ignorância em relação aquilo que de fato ele propõe. Muitos educadores e pastoralistas, nós da Igreja trabalhando com o Pacto Educativo Global, deveríamos ler pelo menos A Pedagogia do Oprimido e A Pedagogia da Autonomia, porque Paulo Freire cresceu em um mundo cristão e portanto o embasamento dele é profundamente cristão. Se lermos com profundidade, a gente descobre esse respeito profundo de ver o ser humano como criatura divina, como algo ligado ao transcendente. A educação deve contribuir para o ser humano viver também a sua transcendência.

Essa aversão a Paulo Freire é um preconceito fundado em um modelo, numa concepção, em uma ideologia que sustenta esse capitalismo excludente que não dá terra, teto e nem trabalho, nem educação e nem saúde. É uma ignorância também, porque ele é muito mais estudado fora do país.

Temos inúmeras escolas e faculdades confessionais no Brasil. Qual deve ou deveria ser o papel delas dentro do Pacto Educativo Global? Lembrando que a Associação Nacional de Educação Católica (Anec) e a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) já o acolheram também por meio da Comissão Episcopal Pastoral para a Cultura e Educação.

Elas [escolas e faculdades] estão se sentindo bastante desafiadas. Vejo um grande empenho para entrar nas propostas do Pacto e construir alianças, tanto localmente, quanto através das suas redes e organizações representativas. Sendo escolas particulares, tem dificuldade de atingir os mais excluídos do sistema educacional, a não ser de forma periférica e em número reduzido. O que eu gostaria que se entendesse é que o pacto não propõe somente melhorias na qualidade de ensino, mas o que pretende é que pela educação se melhore o mundo. A pergunta é para todos nós: O que precisamos fazer para que a educação melhore o mundo? Desta forma conseguiremos pactuar uma mudança estrutural e sistêmica.

Observe que o papa Francisco não mexe somente no sistema econômico, ele está querendo mexer no sistema de educação, então essa mudança sistêmica não é fácil de ser atingida.

Talvez por isso também o papa Francisco escreva que é preciso coragem para que o pacto se realize...

Muita coragem. É bem desafiador. Estamos em um grupo com congregações religiosas e ele é como a sala de aula, o espaço que o educador tem para a partir dali conseguir contribuir para uma mudança sistêmica da educação, mas infelizmente é isso: o educador tem sua sala de aula, e o outro educador outra sala, é tudo fragmentado. É o espaço de poder de uma revolução possível. Agora, como dali atingir um sistema educacional católico? Precisam ser dados passos e estamos refletindo sobre isso.

Eu trabalho em um organismo da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] em que a sala de aula é a comunidade, e aí nós nos identificamos muito com o papa Francisco quando ele também diz que é preciso ter uma aldeia educativa. É nessa aldeia que se encontram as diferentes forças da sociedade. Às vezes é muito difícil em um colégio católico, mas em uma comunidade como o Movimento da Educação de Base trabalha é muito desafiador, ainda que possível. Entramos na comunidade com o educador popular descoberto na própria comunidade, e esse educador forma um grupo, de preferência de analfabetos ou semianalfabetos, excluídos da escola, preferencialmente jovens e adultos, e às vezes tem um idoso também, que nunca aprendeu a ler, e a partir daí faz a jornada comunitária. O grupo dialoga, organiza e muda, transforma a sua comunidade.

É a prática da educação integral proposta por Francisco?

Integral e com o entorno dela, por isso acho desafiador para as escolas católicas fazerem isso. Como elas vão transformar seu entorno? É isso que o papa quer: uma educação integral, libertadora, uma educação que mude a nossa vida em relação à ecologia.

Quem compõe o Grupo das Congregações, o que fazem, como se articulam? É um instrumento para a prática do Pacto no Brasil?

Trata-se de um grupo formado por grandes congregações, principalmente composto por franciscanos, jesuítas, agostinianos, lassalistas, maristas. Articulamo-nos pelo OLMA [Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida]. Fazemos reuniões virtuais. São congregações comprometidas com a Laudato Sí, ela que inspira a revolução que a gente quer fazer, mas o pacto é que nos fez encontrar. Já estamos pactuando uma aliança que pretende ser revolucionária. Chamamos de Sala de Aula, porque estamos trocando experiências, aprendendo. É um processo que tem grandes ganhos, e o que mais queremos aprender é como tornar isso sistêmico em nossas organizações.

O Grupo das Congregações é mais amplo que o grupo Sala de Aula, da educação. Está também na Economia de Francisco, e ali estão inseridos nosso querido teólogo Leonardo Boff e outros teólogos e economistas. Buscamos revolução para a economia, para a educação. Essas alianças todas estão interligadas, porque não é só na natureza que tudo está interligado, na vida tudo está interligado, e interligar todas as propostas do papa Francisco é o grande desafio.

A senhora é religiosa, tem essa sensibilidade e está conectada à educação libertadora. Como esse pacto pode chegar a professores não-católicos, à sociedade como um todo que de fato deve defender Estado e educação laicas?

Quando o papa Francisco lançou o pacto, ele assinou a declaração sobre a Fraternidade Humana, uma declaração conjunta com um representante do Islã Al Azhar. Aqui tem o primeiro sinal de que o pacto tem que ir para além da Igreja. É uma declaração conjunta, um passo inter-religioso, e sendo assim ele chega na escola pública.

E de que modo?

Vejo de duas maneiras. Uma pela educação popular, e o MEB faz isso. Nós chegamos nas escolas públicas, porque os nossos educadores são professores da rede pública. Outra forma é através da Pastoral da Educação da CNBB, porque ela está nas dioceses e se preocupa bastante com o educador da rede pública. Há um espírito e há ações ecumênicas e acho que a Semana Social Brasileira poderia buscar mais essa gente, assumindo o Pacto Educativo.

O educador é a alma da educação, ele é realmente uma peça muito importante, por isso o papa quer essa ligação com o educador e não apenas com instituições, organizações, direções de escolas, mantenedoras. Ele quer essa relação com o educador. É tempo para dar voz ao educador. Ouvi-lo, porque talvez esse seja o caminho.

As Câmaras Municipais em todo o país acabam de ser compostas para novos mandatos. Esse Pacto Educativo Global precisa incidir nas novas legislaturas, não? Há esse desejo, organização, movimento para tal?

As Câmaras Municipais são o espaço de incidência política possível e adequada, e falo a partir de experiências. A Câmara [Legislativa] do DF fez uma atividade pelo Centenário de Paulo Freire e o MEB conseguiu pautar dentro dessa atividade o Pacto Educativo Global, conseguindo-se sensibilizar que, juntamente com a Semana Paulo Freire, em setembro de 2021, se fale do pacto para que possam ser trazidas demandas para dentro do espaço político. Devem ser feitas audiências públicas, exposições, palestras e a fala dos educadores em relação às demandas. A Educação de Jovens e Adultos (EJA), por exemplo, já está pautada, e isso graças à articulação de Movimentos Sociais, da Câmara e da sociedade civil, e aí escolas católicas deverão ser chamadas, tendo em vista que o Pacto Educativo Global será pautado. A Semana Social poderia também dialogar com esse espaço.


Papa Francisco tem criticado pontos estruturais de nossa sociedade. Pensando nele como chefe de Estado, esse líder que tem feito pontes ebuscando diálogo, como a senhora o avalia não para a Igreja Católica, mas para o mundo?

Eu considero que o papa Francisco é um líder mundial, porque ele conseguefazer duas coisas: olhar profundamente o ser humano e entender profundamente as transformações que estamos vivendo. É um líder que se comunica, que tem coração e que tem opções claras: coloca o pobre como centro. Ele diz que o pobre é o centro do Evangelho e da personalidade de Jesus, porque ele diz “Jesus sendo rico se fez pobre”, então ele consegue comunicar perfeitamente o Evangelho e os valores do Evangelho à humanidade, e não apenas para católicos que podem ter uma identidade marcada por um conjunto de devoções, de práticas, mas ele fala para a humanidade, e aí ele extrapola os cristãos. Ele é de fato um líder mundial que nos foi dado de presente até nesse momento em que organizações como a ONU e a OMS [Organização Mundial de Saúde] são bombardeadas e têm dificuldade de assumir uma palavra de liderança, então o papa consegue passar essa palavra de liderança.Ele é citado na sua fala e nos seus gestos.

Um sopro de esperança em meio a tanta confusão...

Exatamente. Olha o que ele diz: “juntos, procuremos encontrar soluções e iniciar sem medo processos de transformação. Olhar para o futuro com esperança”. Veja, é tudo o que nós precisamos hoje, e é isso que ele consegue nos passar, mesmo em tempos tão conturbados.

Eu me pergunto por que nós ainda estamos iniciando processos. Novos processos, dando continuidades? Ele [o papa] é um dos pilares que sustenta isso, que nos chama à transformação, que nos chama a não ter medo, que juntos vamos encontrar soluções.

A palavra de Paulo Freire é de que estar em processo é muito importante, e que a alegria não chega apenas no encontro daquilo que procuramos, mas que faz parte do processo. Ensinar e aprender não pode dar-se fora da boniteza e da alegria. Trazer a beleza para o processo educativo hoje é muito importante, e o papa traz isso, a beleza para a vida, para os nossos processos educativos.