Elio Gasda
14/07/2022

Democracia não é somente o resultado do respeito formal das regras, mas é fruto da aceitação de valores democráticos

Imagem: representação da justiça, a balança, o martelo, a deusa Têmis, quem entre outros símbolos, demonstram o poder da imparcialidade | Foto: reprodução

Por Élio Gasda* | Dom Total

A efetivação de direitos fundamentais está associada ao nível de democracia conquistado por uma nação.

Existimos como nação?

A teoria: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (Constituição Federal art. 1º).

A realidade: Brasil, uma democracia inacabada de baixíssima intensidade.

Não basta um documento invocar o povo. Democracia não é somente o resultado do respeito formal das regras, mas é fruto da aceitação de valores democráticos. Se não há um consenso sobre tais valores, a democracia perde o significado. O país está normalizando o absurdo.

Desde os tempos da República o Estado de direito e suas instituições são atacados por forças antidemocráticas. O bolsonarismo é a consolidação de um processo histórico. Os ataques à democracia se abateram em uma escala comparável a 1964. Um experimento de destruição do Estado! Autoritarismo e violência imperam no lugar do diálogo e do respeito. Valores humanos são pisoteados por quem deveria defende-los. “A capacidade do homem para a justiça faz a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça faz a democracia necessária” (Reinhold Niebuhr).

Tensão e disputa fazem parte do jogo democrático. Democracia pressupõe um regime de confronto de ideias. A regra desse jogo é o cumprimento da Constituição Federal. Somente adversários que respeitam as regras têm direito igual de disputar o poder e governar. Porque Democracia é, em primeiro lugar, uma relação social.

É urgente defender a democracia, falar de democracia. Pequenos ataques fazem a democracia sucumbir (“Como as Democracias morrem”, Levitsky e Ziblatt). O colapso da democracia não acontece somente através das formas clássicas de autoritarismo, rupturas institucionais, golpes de Estado, suspensão da Constituição, supressão das liberdades.

A democracia previne abusos de poder ao estabelecer limites aos chefes de Estado. Líderes autoritários não chegam ao poder apenas através de conflitos armados ou golpes, mas também através de eleições. Quando eleitos, servem-se do Estado em seu favor. Insuflam seus iguais. Neste cenário, desmontam a democracia.

A democracia representativa sofre de legitimidade. O poder está concentrado em poucas mãos. O povo não se sente representado. A política partidária foi parar nas redes sociais, onde o bom senso está envenenado. O desrespeito pela soberania popular fere de morte a democracia (Joao Paulo II, Centesimus annus, 44).

A finalidade da democracia é garantir a igualdade de direitos. Ela depende da existência de um certo padrão de igualdade entre os cidadãos para que os mais ricos não exerçam uma influência desproporcional sobre o governo. A democracia tem um papel no combate às desigualdades.

A desigualdade, o maior problema do país, tem relação direta com a democracia. É obrigação dos governos diminuir a distância entre ricos e pobres. Um meio eficaz de combatê-la é aumentar a representação política de grupos que defendem interesses da maior parte da população.

Sem um padrão mínimo de igualdade, a democracia sempre será incompleta e de baixa intensidade. A desigualdade política tem impacto na desigualdade econômica. Governos elitistas não refletem as demandas das maiorias empobrecidas. Participação e representação são indispensáveis para efetivar políticas de governo e de Estado que conduzam a uma sociedade mais justa e igualitária.

A classe política não reflete a face do povo brasileiro. Um grupo majoritariamente masculino, branco e rico tem influência desproporcional nos rumos do país. Basta olhar para o Congresso nacional. É uma marca da política brasileira. A relação entre poder econômico e poder político excluiu as maiorias: mulheres, negros, indígenas e trabalhadores da participação política. Somos uma sociedade marcada pela escravidão, pelo patriarcalismo e pelo racismo. A violência contra as mulheres e negros também é política. As desigualdades de gênero e raça são estruturantes da desigualdade de representação política no Brasil.

Para construir um sistema político mais representativo e comprometido com a redução da pobreza e da desigualdade é preciso defender a democracia. A democracia precisa garantir a ampliação da presença das pessoas negras, povos indígenas, mulheres e LGBTQIA+ nos espaços decisórios e de poder. Sem a presença dessa população não há democracia. Mas, para isso, é preciso “transformar o direito ao voto de meio fraudulento, como foi até agora, em meio de emancipação” (Marx).

Em nenhum país do mundo, a democracia pode perdurar sem se transformar em “cultura”. A cultura da democracia não tolera ou encoraja a violência. Não é armamentista, não serve a milícias, narcotraficantes ou grupos econômicos poderosos.

“Necessitamos de dirigentes políticos que vivam com paixão o seu serviço aos povos, (…) solidários com os seus sofrimentos e esperanças; políticos que anteponham o bem comum aos seus interesses privados; que não se deixem intimidar pelos grandes poderes financeiros e midiáticos; que sejam competentes e pacientes face a problemas complexos; que sejam abertos a ouvir e a aprender no diálogo democrático; que conjuguem a busca da justiça com a misericórdia” (Papa Francisco).


*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na Faje. Autor de: 'Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja' (Paulinas, 2001); 'Cristianismo e economia' (Paulinas, 2016).