Para o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes, os governos são reféns do agronegócio; ele diz que o campo hegemônico do agronegócio define cargos, mas um governo progressista pode criar políticas que fortaleçam os excluídos, em uma reforma agrária “possível”
Movimentos e intelectuais do campo da resistência costumam dizer que no Brasil nunca ocorreu uma reforma agrária que efetivamente desconcentrasse a propriedade de terras. Para o professor Bernardo Mançano Fernandes, professor livre-docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), o que temos é a reforma agrária possível.
Para ele, o campo hegemônico do agronegócio e da bancada ruralista define ou aprova, por exemplo, quem será o nome à frente do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). A vantagem de um governo progressista é a de poder criar políticas públicas que fortaleçam comunidades e povos excluídos; e que, no médio e longo prazos, isso possa corroer o poder hegemônico.
Mançano tem entre seus temas centrais de estudo o capitalismo agrário, a reforma agrária, desenvolvimento territorial, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Via Campesina.
O pesquisador aponta os movimentos sociais como impulsionadores da reforma agrária — por isso as tentativas fracassadas de criminalização, como a CPI do MST. Ele prevê mais violência no campo com o aumento das armas, mas acredita que o modelo destruidor vigente está se esgotando. “O agronegócio não é sustentável, está morrendo; as forças populares estão nascendo”. Confira a entrevista concedida em agosto a Alceu Luís Castilho e Nanci Pittelkow.
A entrevista com Bernardo Mançano Fernandes, professor livre-docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), é de Alceu Luís Castilho e Nanci Pittelkow, publicada por De Olho nos Ruralistas, 03-01-2024.
Eis a entrevista.
Nós tivemos uma contrarreforma agrária nos governos Temer e Bolsonaro, sendo que já no governo Dilma Rousseff houve uma diminuição de assentamentos depois de um pico nos governos FHC e Lula. Agora, no novo governo de Luiz Inácio, foram anunciadas algumas medidas de retomada. A gente pode dizer que o Brasil está de novo numa marcha de reforma agrária? São medidas compatíveis para compensar os déficits dos governos anteriores?
Temos diferentes leituras desse tema. Algumas entendem que a reforma agrária deve ser feita de uma única vez e deve desconcentrar a estrutura fundiária. Ou seja, se não diminuir o índice de GINI (medida de desigualdade), nós não temos uma reforma agrária, mas apenas uma política de assentamentos rurais. Na minha opinião essa leitura é muito ortodoxa, e nós sabemos que a política é sempre um processo que deve considerar cada momento. Mesmo os Planos Nacionais de Reforma Agrária (PNRA) 1 e 2, de 1985, voltados para uma fração do território com estimativa de número de famílias e área a ser desapropriada, não conseguiram cumprir essa meta.
Porque o histórico do Brasil é o da concentração de terras na sua estrutura formativa, determinada pelos grandes latifúndios e pelas corporações nacionais e multinacionais que controlam esses territórios. Teríamos de ter um governo com grande poder para desconcentrar essa estrutura fundiária e isso não existe. [Desde a redemocratização] cada governo adotou medidas contra ou a favor da reforma agrária. Nunca houve uma iniciativa de estado ou governo em defesa da reforma agrária. Todas as políticas e planos já criados foram resultado da pressão dos movimentos sociais e camponeses.
Esses números atuais de 1 milhão de famílias em 90 milhões de hectares de terras que foram destinadas à reforma agrária, [são terras] não necessariamente desapropriadas, porque muitas eram terras públicas, com uma parte sendo negociada e os latifundiários receberam pela terra. No Brasil, a reforma agrária não é de expropriação, mas de negociação. E isso é mérito da luta popular, que avança e recua conforma a conjuntura, que se transforma e que contribui com alimentação saudável. Nós temos a reforma agrária possível derivada da luta dos sem-terra e dos governos progressistas.
Quando temos um governo conservador, o processo para completamente. Esse é um novo momento de reforma agrária. O que eu quero enfatizar aqui é que essa é uma política do futuro, porque o modelo do agronegócio é predatório, que gera alimento ultraprocessado, com desmatamento, com uso de veneno, contaminação e problemas para a saúde ambiental e saúde pública.
Sobre essa correlação de forças, o governo Lula não se dispõe a enfrentar o agronegócio. Faz uma distinção do agronegócio “malvado”, mas não está disposto a enfrentar uma bancada ruralista com 300 deputados. Então, como implementar uma reforma agrária nesse contexto? Será que as medidas anunciadas, ao lado da primeira-dama, não foram mais identitárias do que as realmente necessárias? Temos uma configuração de ministérios alinhadas a uma demanda internacional, de defesa do ambiente e dos povos originários, com Marina Silva e Sônia Guajajara, e atendendo a uma parte da esquerda. As velhas matrizes econômicas foram deixadas de lado nesse anúncio?
Eu entendo que o que a bancada ruralista representa é um reflexo da hegemonia do agronegócio no mundo. Ou seja, essa conjuntura de formação da bancada ruralista no Brasil se repete em outros países. Os governos são reféns do agronegócio. O Lula não vai definir quem é o ministro no Mapa, é o agronegócio quem define.
A bancada ruralista é fascista, mas ele vai ter que negociar, porque parte dela faz parte da bancada de apoio do governo. É uma conjuntura que pode se romper a qualquer momento e que pode derrubar o presidente da República. É um problema seríssimo com o qual o governo tem que saber lidar. A situação da base de apoio é quase intratável, mas ela representa a hegemonia do poder. O papel do PT e do presidente é o de tentar negociar a outra parte que está excluída do processo [de poder]. Aí entra a questão identitária, os sem-terra, os indígenas, as mulheres, os negros e negras, todas as pessoas que estão fora desse processo hegemônico. O governo progressista tenta transferir uma parte dos recursos para atender as demandas dessa população excluída.
E quanto mais esse povo excluído se organiza, mais ele disputa o Estado e seus recursos e fortalece o governo. E isso vem acontecendo. O governo Lula de 2003 foi a primeira experiência de um governo popular nesse país. Talvez estejamos vivendo agora a quarta experiência. Não sabemos se essa tendência será mantida ou nas próximas eleições será eleito um fascista. O mundo todo tem alternado os ciclos entre governos progressistas e conservadores, que podem ou não chegar ao fascismo, mas entre os progressistas, não passam da centro-esquerda. Não há avanço para um governo revolucionário porque não há conjuntura para isso.
Por isso é fundamental construir políticas públicas para que essas populações possam alcançar melhor qualidade de vida, que possam tentar mudar o mundo e construir espaços para tentar romper com essa hegemonia, que se enfraquece pelo enfrentamento e pela sua insustentabilidade. Os contra-hegemônicos conseguem aos poucos criar estruturas para minar esse poder.
Como avalia ponto-a-ponto esse programa, junto com o anúncio do Plano Safra 2023/2024, com cifras recordes (R$ 71,6 bilhões ao crédito rural para agricultura familiar), retomada da reforma agrária, com prioridade para famílias comandadas por mulheres e previsão de 40 mil famílias regularizadas; Programa Quintais Produtivos das Mulheres Rurais, com meta de 90 mil até 2026; Bolsa Verde, com auxílio a famílias de baixa renda vivendo em áreas a serem protegidas ambientalmente; Programa Nacional de Cidadania e Bem Viver para Mulheres Rurais; Lavanderias Coletivas, instalação de nove unidades em assentamentos em três estados do Nordeste; Criação da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo; Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios?
Sabe qual é a grande vantagem dessas políticas? Elas existirem. Quem proporia isso do poder hegemônico? Ninguém. Quem propõe essas políticas são os próprios sujeitos, ocupando um espaço político fundamental em Brasília e construindo essas experiências. Quatro anos de desenvolvimento dessas políticas constroem novas experiências, transforma novos espaços, supera novos problemas.
É por aí que é possível avançar, disputar o poder. As mulheres cantam isso há décadas. A ação das mulheres na reforma agrária é o que faz avançar essa luta. A reforma agrária não acontece sem elas, mas elas nunca foram beneficiárias de políticas como essas, que fazem parte desse território onde a vida delas acontece. Essas são sementes da transformação. Mas eu esperava nessa lista a inclusão dos mercados, para que essas mulheres possam levar a produção diretamente para aquelas que consomem. Em relação à verba, podemos avaliar que foram valores muito superiores para o agronegócio em comparação com a agricultura familiar, mas é o que a correlação de forças está permitindo. E essas forças estão nascendo, enquanto o modelo hegemônico está morrendo, essa é a diferença.
Em relação ao poder da bancada ruralista e do agronegócio face às escolhas do governo, se o governo não “obedece”, não escolhe um ministro do Mapa, por exemplo, o que acontece? O risco maior é o impeachment?
Se o governo indicar alguém que esse poder aceita, tudo bem. Mas vai colocar um Paulo Teixeira (ministro do Desenvolvimento Agrário) no Mapa e vê o que acontece? Ele é ministro do MDA e não do Ministério da Agricultura porque não faz parte desse projeto político (hegemônico). Alguns ministérios são estratégicos para ceder e ter o apoio (parlamentar). Desde o primeiro governo Lula em 2003 o agronegócio “indica” o ministro. Foi o caso de Roberto Rodrigues. As corporações já estão fazendo essas negociações desde antes das eleições, declarando apoio, “mas quem vai indicar o ministro da agricultura somos nós”.
Para eles, não importa quem é o governo, se é o (Gustavo) Petro (presidente da Colômbia), (Alberto) Fernández (Argentina) ou o Lula, desde que não mexam nas estruturas que controlam o capitalismo. Só avançamos por esse conjunto de políticas como essas citadas da reforma agrária. O poder progressista abre uma brecha para avançar um pouco, mas sob o controle do poder hegemônico. Se o avanço é maior do que o que eles permitem, eles usarão sua força para derrubar o governo.
O avanço da extrema direita e o governo Bolsonaro são fruto de uma percepção de que essas políticas populares permitem algum avanço?
Por que eles anularam o Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária)? Por que associaram o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) com a produção de commodities e não com agroecologia no governo anterior? Porque o modelo da agroecologia bate de frente com o agronegócio.
O Pronera parte de uma educação crítica, que vai levar ao enfrentamento com o agronegócio. Qualquer tipo de política pública que questione a hegemonia é anulada ou destruída, se possível. Ou invertem o processo, como fazer que a agricultura familiar sirva ao agronegócio.
Sobre a CPI do MST, você acompanhou as sessões? Como avaliou essa CPI?
Uma das avaliações é a estupidez da bancada ruralista. Chega a ser cômica. Eles estão tão confortáveis com a zona hegemônica que fazem perguntas que permitem respostas que desmontam tudo o que eles afirmam. Eles realmente acreditam que o MST é um movimento criminoso e aí eles perdem a noção do que é o conhecimento de fato. Durante toda CPI o que se demonstrou foi a existência de um movimento (MST) que contribui com a agricultura e com o desenvolvimento econômico do país.
A CPI teve algum poder de barganha junto ao governo Lula?
Acho que num primeiro momento eles consideraram que, como MST era um parceiro forte do governo Lula, se conseguissem desbancar o movimento, fragilizariam o governo. Mas não conseguiram. Eles iriam barganhar de qualquer maneira.
A oposição conseguiu convocar muitos depoentes, ao contrário da bancada do governo. Acha que o depoimento do (João Pedro) Stédile (líder do MST) influenciou no andamento da CPI?
A participação do Stédile foi a mais importante. De todas as participações que eu assisti, o conteúdo mais elaborado veio da defesa (do movimento), não da acusação. A acusação não conseguiu atingir seu objetivo. E o Stédile colocou uma pá de cal na CPI. Ele não ficou encurralado em nenhuma questão.
Não houve uma terceirização da bancada ruralista para os bolsonaristas assumirem a linha de frente da CPI?
A bancada ruralista não é homogênea. Há tendências mais esclarecidas, que conhecem o papel do MST, como Kátia Abreu, Roberto Rodrigues, o próprio ministro da Agricultura (Carlos Fávaro). O que ficou claro é que participou da CPI a parte mais conservadora da bancada e os bolsominions. Muitos nem sequer são ruralistas. Alguns representam, mas outros apenas se identificam, votam com o setor. Os bolsominions eram os menos preparados. Ou tiveram uma assessoria ignorante, ou não tiveram assessoria. Apesar de ser poderosa, a bancada tem diversos pontos fracos.
Considerando que temos um governo de centro-esquerda, como você está vendo a situação da violência no campo? Por exemplo, o assassinato da líder quilombola Mãe Bernadete (Maria Bernadete Pacífico), entre outros. Você vê uma perspectiva de combate à essa violência?
Se nós pegarmos todo o contexto de armamento do governo Bolsonaro, e agora estão se armando mais porque têm mais medo, as evidências apontam para um aumento, e não para a diminuição da violência. Agora, a maior parte dos assassinatos que acontecem decorrem de uma milícia que está organizada para isso no Brasil inteiro.
O problema maior é que essas milícias têm o apoio da polícia. Precisaria de um trabalho muito bem-feito de criação de uma força não identificada com a bancada ruralista nem com a milícia, que pudesse apurar os crimes e capturar os criminosos de fato. Um exemplo. Eu aqui no Pontal (do Paranapanema) já fui ameaçado de morte várias vezes. Todos os boletins de ocorrência que eu fiz desapareceram.
A segurança do país é uma segurança que ameaça. Esse governo poderia criar uma polícia agrária. Por exemplo, com a volta do governo Lula, os organismos de combate ao trabalho escravo, desmontados no governo Bolsonaro, voltaram a funcionar. Precisamos de instituições que não concordem com o assassinato de quilombolas, população de rua, negros, pobres.
Seria possível desmilitarizar as forças policiais?
A estrutura da corporação existe pela lógica da militarização. Desmilitarizar seria criar uma outra polícia e este seria um processo de longo prazo.