SSB
22/10/2020
Foto: Levante Popular da Juventude

Mutirão de eleições pela vida: a crise na representação política mobiliza indivíduos e setores a lutarem de diferentes maneiras por um país melhor

Karla Maria | 6ª Semana Social Brasileira

Às vésperas das eleições municipais e em um contexto de descrédito na representação política – que conta até com parlamentares que insistem em esconder dinheiro público nas nádegas, para dar apenas um exemplo simbólico –, 555.428 pessoas buscam o voto do eleitorado brasileiro para os cargos representativos nas Câmaras Municipais e nas Prefeituras de 5.568 municípios. Em 2016 eram 496.927 candidatos e candidatas.

O voto é uma das ferramentas apresentadas para a manutenção do Estado Democrático de Direito, somado aos plebiscitos, referendos e iniciativas populares, como constam no artigo 14 da Constituição Federal. Ao que parece, contudo, as ferramentas apresentadas pelo atual sistema e a atual configuração do Estado brasileiro – como democrático – parecem não responder às demandas e realidades de parte da população.

Para o filósofo José Antonio Moroni, integrante do colegiado de gestão Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), membro da plataforma dos movimentos sociais pela reforma do sistema político, nós, brasileiras e brasileiros, não vivemos em um Estado Democrático de Direito de fato como aquele apresentado na Constituição Federal. “Um país tão desigual como o nosso, em que as desigualdades de classe, gênero e de raça estruturam nossa sociedade, não é capaz de sustentar esse termo democracia. O Estado Democrático de Direito conseguiu chegar a alguns setores da sociedade, aos homens brancos, proprietários e à classe média, mas se você pensar esse processo democrático nas periferias urbanas, na disputa pela terra, na questão quilombola, indígena, por exemplo, esse Estado nunca conseguiu chegar lá”.

E é diante dessa realidade, de democracia fragilizada, que as eleições de 2020 se apresentam para Moroni com debates muito mais alimentados pelo marketing político do que por propostas de políticas públicas. “As campanhas poderiam ser momentos de propostas de políticas, mas as eleições têm mais a ver com poder econômico e de marketing para captar aquilo que o eleitor quer ouvir e não àquilo que ele quer propor à sociedade. Nesse sentido, em todo processo eleitoral, quem ganha já sai fragilizado. Quem ganha não tem projeto, e do ponto de vista da cidadania fica complicado cobrar”, complementa.

A avaliação de Moroni é materializada na figura do presidente da República Jair Bolsonaro. Candidato inexpressivo com três décadas no parlamento, foi eleito sem participar de debates públicos. A tática vitoriosa do então candidato hoje se espalha pelo país. “A figura do presidente não se responsabilizou pelo processo democrático. Ele não apresentou proposta nenhuma, só tinha ataque, ódio e hoje vamos cobrar o quê dele? Nada”, avalia o filósofo.

Ao mesmo tempo em que as redes sociais proporcionam – para aqueles que têm acesso à internet em seus celulares – o acompanhamento de debates e propostas de candidatos através de lives, as emissoras de televisão, que são concessões públicas, estão se negando a promover debates públicos com os candidatos das maiores capitais do país. Enquanto isso, nas mesmas emissoras são transmitidas mensagens diárias doTribunal Superior Eleitoral (TSE) de que é importante e obrigatório votar.

Os processos eleitorais no Brasil

Embora se saiba que a primeira eleição no país aconteceu 32 anos depois de Pedro Álvares Cabral por aqui atracar sua nau – era a escolha dos vereadores da capitaniade São Vicente, no litoral paulista –, as primeiras eleições “gerais” com normas ocorreram em 1822. Nelas, D. João VI convocou o Brasil para a escolha de deputados para a corte de Lisboa. Era um processo complexo e só com a “Independência” o Brasil foi obrigado a aperfeiçoar sua legislação eleitoral, e o fez copiando a legislação eleitoral francesa.

“Até 1828, as eleições para os governos municipais obedeceram às chamadas ordenações do reino, que eram as determinações legais emanadas do rei e adotadas em todas as regiões sob o domínio de Portugal. No princípio, o voto era livre, todo o povo votava. Com o tempo, porém, ele passou a ser direito exclusivo dos que detinham maior poder aquisitivo, entre outras prerrogativas. A idade mínima para votar era 25 anos. Escravos, mulheres, índios e assalariados não podiam escolher representantes nem governantes”, explica o livro O Sistema Eleitoral Brasileiro, Síntese e História, publicado em 2009 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O mesmo compêndio histórico do TSE lembra que é apenas a partir de 1932, com o Código Eleitoral que criou a Justiça Eleitoral, que foram reguladas em todo o país as eleições federais, estaduais e municipais, bem como o voto secreto, o voto feminino e o sistema de representação proporcional, em dois turnos simultâneos. Também em 1932, pela primeira vez a legislação eleitoral faz referência aos partidos políticos, mesmo ainda admitindo candidaturas avulsas.

A busca pela participação política, em especial das mulheres, data de muito antes, e é o que aponta o artigo “O voto de saias: a Constituinte de 1934 e a participação das mulheres na política”, publicado por Rita de Cássia Barbosa de Araújo, do Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco.

“As ações das feministas, voltadas para conquistas de direitos políticos para a mulher, intensificaram-se em torno de 1918, quando Berta Lutz e um grupo de colaboradoras criaram, no Rio de Janeiro, uma organização chamada Liga para Emancipação Intelectual da Mulher, que, posteriormente, passou a denominar-se Liga pelo Progresso Feminino. Em 1919, o senador Justo Chermont apresentou projeto de lei estendendo o direito de voto às mulheres, não conseguindo, porém, sua aprovação. Em 1922, devido a novas estratégias de luta, a Federação das Ligas pelo Progresso Feminino converteu-se na Federação Brasileira para o Progresso Feminino, que, naquele mesmo ano, organizou o I Congresso Internacional Feminista, no Rio de Janeiro. Coube às mulheres do Rio Grande do Norte o pioneirismo na conquista do direito de voto, ainda em 1927, havendo, porém, um retrocesso nas conquistas eleitorais femininas no ano seguinte”.

Décadas depois, em 2020, as mulheres são 33,4% do total de candidatos aos cargos públicos. Entre o eleitorado, elas são a maioria, perfazendo 52,5%, enquanto os homens são 47,5%, e 0,027% não informaram o gênero. Dentre os registros apresentados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 9.985 pessoas se candidataram com nome social.

Para além dos números, a história mostra que a organização do eleitorado em torno de temas específicos impacta de modo decisivo nos processos que antes demandariam iniciativas exclusivamente dos parlamentares e chefes dos executivos. É a incidência política.

“A própria Semana Social Brasileira, as entidades e organizações do campo democrático popular procuram fazer crítica no que nós já construímos para avançar no campo democrático. Não é uma crítica para destruir, que é o que fazem alguns políticos que nos governam, que se apresentam como antissistema, como o novo, mas atuam com autoritarismo e ódio. Não. A crítica que fazemos é feita para avançar no patamar civilizatório. Por isso fazer a incidência, pautar a agenda pública é necessário”, explica José Antonio Moroni.

A Coalizão Negra por Direitos faz isso. É uma articulação que reúne 150 organizações, coletivos e entidades do movimento negro e antirracista que promove ações de incidência política nacional e internacional na defesa dos direitos da população negra brasileira. A coalizão entende que é só pressionando que o Estado brasileiro apresentará mudanças significativas em suas políticas e prioridades.

“A História exige da população negra brasileira e de toda a diáspora africana ações articuladas para o enfrentamento ao racismo, ao genocídio e às desigualdades, injustiças e violências derivadas dessa realidade. Esta coalizão se reúne para fazer incidência política em nosso próprio nome a partir dos valores de colaboração, ancestralidade, circularidade, partilha do axé (força de vida herdada e transmitida), oralidade, transparência, autocuidado, solidariedade, coletivismo, memória, reconhecimento e respeito às diferenças, horizontalidade e amor. Em defesa da vida, do bem-viver e de direitos arduamente conquistados, irrenunciáveis e inegociáveis, seguiremos honrando nossas e nossos ancestrais, unificando em luta toda a população afro-diaspórica por um futuro livre de racismo e de todas as opressões”.

Assim se apresenta a coalizão em um contexto em que Estado brasileiro não responde com políticas públicas ao fato de que – segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública recém- publicado – oito a cada dez pessoas mortas pela polícia em 2019 eram negras. Polícia: braço do Estado.

Na prática, a incidência política pode ser entendida como a atuação de um indivíduo ou organização no fortalecimento de ações que permitem modificar ou aprimorar políticas públicas com fins de garantir direitos fundamentais, contribuindo na construção de argumentos políticos e alcançando mudanças específicas no âmbito público, como no texto de leis, na defesa de políticas públicas, na denúncia de desvios do Estado, como diversas entidades vêm fazendo em nosso país.

Em março deste ano a advogada Sheila de Carvalho, membro da coalizão, denunciou a violência policial e a política do genocídio negro brasileira perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. "Por Jenifer, Kauan, Ágatha, Kethellen, Denys Guilherme, Gustavo, Marcos, Luara, Gabriel, Eduardo, Bruno, Mateus e tantas outras vidas interrompidas por uma violência cotidiana. Por nossos irmãos, nossos filhos, nossos pais, nossos companheiros que andam nas ruas brasileiras com um alvo nas cabeças. E por Marielle Franco, vereadora negra no Rio de Janeiro, ao que tudo indica, assassinada pelas milícias cariocas, grupos paramilitares formados a partir dessa política de segurança pública racista, ineficiente e sanguinária".

Em agosto, a Coalizão protocolou o 56º pedido de Impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, o primeiro da história do movimento negro. O pedido de afastamento tem como denúncia central a negligência do governo federal no combate à pandemia de Covid-19.

“O Movimento Negro, em especial de mulheres negras, vem para questionar essas estruturas brancas, masculinas. Esses são indicativos de vitalidade do nosso processo democrático, e apesar de tudo que nós vivemos há uma vitalidade. A resistência do povo negro sempre existiu, mas hoje a forma como o Movimento Negro se coloca e questiona a branquitude é fundamental para criar um país realmente democrático. A pauta da questão racial é central. Mesmo setores da esquerda institucionalizada precisam aprender isso. Essa é a pauta política que nós temos que enfrentar”, analisa Moroni.

Dentre os mais de 555 mil candidatos a um cargo público está o pintor e poeta da rua Sebastião Nicodemes. Ele nasceu em Assis, no interior de São Paulo, mas a vida o levou à capital, onde viveu em situação de rua. Hoje, aos 52 anos de idade, Tião como é conhecido, é candidato à vereança de São Paulo. “A população de rua, trabalhadores, desempregados se viram como podem. Temos dois mundos dentro desta cidade e a gente precisa diminuir essas desigualdades para que todos tenham oportunidades. Falo da região em que eu sobrevivi [Luz, no centro de São Paulo], quando vim parar na rua”, conta Tião, lembrando que se alimentava à noite das sobras das frutas vendidas no Mercado Municipal de São Paulo.

A candidatura de Tião floresce em um contexto, como vimos, de crise de representatividade, em que a desigualdade no país arrasta mais e mais famílias para a moradia precária ou para a ausência dela. É a partir também desta realidade que ações silenciosas, mais discretas, denunciam a resistência de um povo que não consegue se calar diante do atual cenário.

É assim com os Movimentos Nacional e Estadual [de São Paulo] da População em Situação de Rua. Eles têm realizado encontros com candidatos à Prefeitura da capital paulista, e nesses encontros fazem incidência política. Pontuam a necessidade de que a futura gestão municipal assuma políticas públicas a partir de consultas à população por meio de conselhos deliberativos, colocando a população de rua no orçamento público.

Os encontros acontecem de forma presencial ou virtual, a depender da possibilidade do candidato e da candidata nesses tempos de pandemia da Covid-19. Para participar do encontro, é preciso que antes tais candidatos já tenham assinado uma carta-compromisso na qual são pontuados especificamente vários temas que permeiam ou atormentam a vida de quem está nas ruas.

“Queremos o fortalecimento do comitê intersetorial de política municipal para a população em situação de rua e sua transformação em um conselho deliberativo”, diz Anderson Lopes Miranda, que é coordenador em São Paulo do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Ele continua: “para nós é fundamental o compromisso oficial dos candidatos. A população de rua é cidadã, ela tem direitos e deveres. Ela vota e não tem que omitir o voto. Nossa luta é em defesa da vida, e neste momento de pandemia estamos escutando os candidatos à vereança e à Prefeitura da cidade”.

O mestre Paulo Freire, paradoxalmente tão temido e amado neste Brasil de 2020, em sua práxis afirma que “a cidadania se cria com uma presença ativa, crítica decidida, de todos nós com relação à coisa pública”. Ele destaca a cidadania como um direito, assegurado pelo Estado e com ampla participação popular, sendo esta última algo fundamental no processo de libertação, onde a “existência humana não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens [e mulheres] transformam o mundo”.

Que Tiões, coalizões e mobilizações se espalhem no cenário político para a construção de processos que culminem em votos conscientes, do bem, e para o bem de todas as brasileiras e brasileiros.

A 6ª Semana Social Brasileira produziu uma espécie de cartilha digital: “Mutirão de eleições pela vida”. O objetivo é oferecer conteúdo com elementos para debates sobre a democracia participativa e do projeto popular em que o acesso à terra, ao teto e ao trabalho sejam considerados nas escolhas das/os candidatas/os/ à eleições 2020.

A 6ªSSB quer fortalecer a mobilização popular para gerar processos de formação e conscientização sobre às eleições municipais. Acesse o material aqui: [leitura pdf] https://bit.ly/3059zDU